sexta-feira, 24 de agosto de 2018

O  PROFETA  ELIAS, UM  DOS  IMORTAIS

   Olá pessoal! Nesse post vou falar sobre algumas tradições que envolvem o profeta Elias.
   No post anterior eu havia falado um pouco sobre o estado mental "profético" um estado mental muito avançado e alcançado pelos grandes adeptos através do qual eles conseguem realizar grandes feitos. Eu havia mencionado que Elias se valia de uma posição especial colocando a cabeça entre os joelhos para se alcançar esse estado e também falei sobre que as técnicas do cabalista Abraham Abuláfia eram capazes de induzir a estados semelhantes a este, motivo de seu sistema costumar ser chamado de "cabala profética". Mas nesse post vou falar especificamente sobre o profeta Elias. 
   O profeta Elias viveu, de acordo com com a Bíblia, durante o reinado de Acab que seria em meados do séc. IX a.C. Ele teve que enfrentar a idolatria que ainda insurgia entre os judeus e realizou grandes prodígios. No fim, de acordo com a Bíblia ele foi arrebatado. Isso era algo sobre o qual ele mesmo estava bem informado, assim como também o sabiam seu discípulo Eliseu e os filhos dos sacerdotes. O que a Bíblia conta é que os filhos dos sacerdotes ficaram ao longe enquanto Elias atravessou o rio Jordão abrindo suas águas com seu manto, acompanhado de Eliseu. Elias disse a Eliseu para pedir a ele algo antes dele "partir" e Eliseu pediu "uma porção dobrada do teu espírito" (inspiração profética). Elias respondeu que se ele fosse capaz de enxergar quando ele fosse arrebatado isso lhe seria dado. Então surgiu um carro de fogo e arrebatou Elias aos céus sendo que seu manto caiu e Eliseu viu tudo recolhendo o manto de Elias e partindo as águas do Jordão em sua volta. Assim, Eliseu passou a ser portador da mesma inspiração profética de Elias e a realizar feitos tão extraordinários quanto os dele. Esse é um episódio que permite muitas interpretações, as mais aceitas são as que dizem que Elias não morreu, foi "elevado" a outro plano de existência, transcendendo a existência física, se tornou ascensionado. Assim sendo, considera-se que ele não morreu. O mesmo se diz a respeito do patriarca Enoch, que ele não morreu. Dessa forma, Elias tornou-se um dos imortais. Representação de Elias sendo arrebatado e deixando seu manto cair:

   Existem muitas tradições a respeito de indivíduos que alcançaram esse estado, pelo menos sobre dezenas de personagens com esse perfil até onde sei. Falei sobre alguns desses no post em meu outro blog: https://ricardodias7.blogspot.com.br no post de título "IMORTAIS". Sobre Enoch, é curioso que é citado no clássico "Drácula" de Bram Stoker. Passa despercebido pela maioria dos leitores que Stoker foi membro da Golden Dawn, notória sociedade esotérica do séc. XIX e que sua obra está repleta de referências veladas a princípios ocultistas bem fundamentados, a maioria não tem capacidade de distinguir esses detalhes e na verdade ficam demasiado envolvidos pela fantasia da trama desatentos a isso. No livro há um personagem que foi internado no hospício chamado Renfield, ele acredita que é possível prolongar sua existência comendo outras criaturas asquerosas como moscas e aranhas. Estava tão certo de sua crença que em uma parte de um diálogo com o médico que cuidava do lugar declarou que "-saiba que, quanto aos assuntos terrestres, ocupo a posição que Enoque ocupou quanto ás coisas espirituais." O médico perguntou: "Porque Enoque?" ele respondeu "-Porque andou com Deus." o médico pensa consigo "-Não consegui descobri a analogia(...)." O louco Renfield comparou a si mesmo com Enoque porque achava que poderia "evitar a morte" como o patriarca o fez, e mesmo a ideia de que "sangue é vida" ele havia tirado da Bíblia, livro de Deuteronômio onde se diz que não se deve comer um animal sem abatê-lo corretamente pois a "alma está no sangue". São alguns detalhes chave que creio a maioria nem sequer se deu o trabalho de notar ou refletir na obra de Stoker. Mas, voltando a Elias, a partir de então ele passou a ser considerado um imortal, um ser ascensionado, e a tradição judaica fala de muitos episódios mesmo em época relativamente recente em que Elias se manifesta a algum adepto. Ele desapareceu misteriosamente assemelhando-se a outros como o indiano Mahavatar Babaji que segundo consta, se manifestou para Paramahansa Yogananda, personagem influente no movimento "Nova Era" dos anos 60. Outro personagem com perfil semelhante foi Shankaranchaya também chamado de Shânkara, ele foi um reformador do hinduísmo e autor de muitos livros que teria vivido em meados do séc. VIII d.C., e, segundo Blavatsky, se isolou em uma gruta no Himalaia sem se submeter a morte. Muito semelhante também ao personagem conhecido na tradição árabe como El Khidr, o "Homem Verde" que aparece no Alcorão cap. 18. A tradição sufi, vertente esotérica do islamismo narra muitas histórias nas quais El Khidr apareceu fisicamente para alguns califas do passado e também para alguns místicos sufis. 
   O grande pesquisador russo Zecharia Sitchin (1920-2010) viveu e estudou em Israel, e esteve bem familiarizado com as tradições a respeito da imortalidade de Elias. Em seu livro "Fim dos Tempos" ele fala sobre a ceia cerimonial que é celebrada na noite do primeiro dia da páscoa judaica. Nessa ceia, é costume colocar uma taça com vinho simbolicamente para Elias sobre a mesa, a porta é deixada aberta e um hino especial é recitado, ele é considerado quase como um "Papai Noel"!. Assim, as crianças judias crescem acreditando que Elias ainda está vivo e um dia retornará para anunciar a vinda do "Messias" (levando-se em conta que boa parte dos judeus não considera que Jesus foi esse Messias).
   Dentro da cabala, assim como eu mencionei anteriormente sobre o sufismo e a manifestação de El Khidr para os adeptos, se considera que Elias se manifesta para os grandes cabalistas. Todos os grandes cabalistas do passado incluíndo Abraham Abuláfia e Issac Luria diziam que Elias se manifestou para eles. O rabino Josef Saragossi (1460-1507) responsável por começar a transformar a cidade de Safed em Israel em um centro de estudos cabalísticos disse que Elias apareceu para ele. Veja essa citação do livro "Meditação e Cabalá" de Aryeh Kaplan:

   "O autor do 'Sêfer Charedim', um jovem contemporâneo, escreveu: 'Josef Saragossi, professor do Rabdaz, sempre trouxe paz entre os homens e seus vizinhos, entre marido e mulher, e até mesmo entre gentios. Ele foi merecedor de ver o profeta Elias.'"

   Por isso, a visão de Elias costuma ser considerado algo que os grandes cabalistas tem que fazer por merecer para que ele se manifeste, e também se considera que ele guia e incentiva os grandes estudantes cabalistas a persistirem para alcançarem mais conhecimento e divulgar a cabala aos interessados.      

sábado, 18 de agosto de 2018

O  ESTADO  DE  CONSCIÊNCIA  DE  PROFECIA

   Olá a todos! Nesse post vou falar sobre o conceito do que é um "profeta" e as peculiaridades do estado mental alcançado pelos indivíduos que alcançaram esse nível.
   A maior parte da imagem formada no inconsciente coletivo sobre o que é um profeta vem de cenas do Antigo Testamento, os profetas são reconhecidos por serem homens que vivem reclusos, afastados dos centros urbanos e pouco acostumados com os confortos e luxos da civilização. Pensa-se que eles tem um tipo de "ligação especial" com o divino, que são capazes de "profetizar" sobre acontecimentos que irão se concretizar no futuro e realizar "milagres", fenômenos que transcendem o que é considerado normal. Há um paralelo dos profetas do Antigo Testamento com os "oráculos" dos templos pagãos da antiguidade, pois, esses também serviam de "porta-voz" da vontade divina e davam "oráculos" previsões sobre o futuro. Um detalhe que se repete nesses "oráculos" dos templos pagãos e os profetas bíblicos é que os dois tipos costumavam fazer uso de algum método para entrar em um estado mental diferente do comum. Os oráculos dos templos pagãos recorriam a aromas de incenso para isso, e também há os relatos sobre o templo de Delfos onde os oráculos eram expostos a vapores de gases de fendas do solo sobre o qual o templo tinha sido construído para se atingir esses estados mentais. Já os profetas bíblicos recorriam a certas posturas meditativas e música como meio de se alcançar esses estados.
   Jesus disse no Evangelho de Lucas cap. 3 versículo 24: 

   "Em verdade vos digo: nenhum profeta é bem aceito em sua pátria."

   Assim o foi com todos. Elias teve vários atritos com os reis de sua época e mesmo Maomé foi expulso de sua cidade natal. Como enviados a missões especiais e denunciantes dos desvios de conduta de seus contemporâneos eles eram tidos como portadores de más notícias. Em relação aos muitos fenômenos que eles manifestaram, deve-se separar aqueles realizados para servirem de testemunho para a exaltação da unicidade de Deus dos feitos de acordo com métodos específicos, esses seguem métodos que na verdade podem ser reproduzidos por adeptos até mesmo da atualidade (e de fato o são como os relatos sobre grandes cabalistas judeus confirmam). Mas tais métodos são considerados "cabala prática" e por isso mantidos no mais absoluto sigilo. Frequentemente esses métodos envolvem estados meditativos avançados.
   Um dos cabalistas que esteve envolvido com avançados métodos meditativos foi Abraham Abuláfia (1240-1291), tanto que seus métodos por vezes são chamados de "cabala profética" ou também "cabala estática". Abuláfia viajou muito por vários países, divulgava seus métodos e esteve envolvido em controvérsias, mas nunca deixou de escrever e legou muitos livros, embora certos manuscritos dele tenham sido mantidos até hoje nas mãos de uns poucos eruditos judeus que creem que tais métodos não deveriam ser divulgados. Fiz uma menção biográfica sobre Abuláfia no meu livro "O Conhecimento da Cabala" link á direita do blog. 
   No livro "Meditação e Cabala" de Aryeh Kaplan, esse autor apresenta muitas informações sobre a vida e os métodos de Abuláfia. Abuláfia nasceu em 1240 e isso pode parecer sem significado, mas, de acordo com o calendário judeu, esse era o ano 5000. Abuláfia estava ciente desse detalhe e dizia que havia sido incubido de uma missão especial em vida. Os métodos meditativos que Abuláfia apresentava em seus livros eram avançados, mas não eram absolutamente sua invenção, eram baseados em técnicas mais antigas, mas que nunca antes outro cabalista teve coragem de expô-los como ele afirma em certo trecho de seus escritos: "Nenhum outro cabalista antes de mim escreveu livros explícitos sobre esse assunto." Existe muitas interpretações que os rabinos fazem sobre porque em teoria deixaram de existir "profetas". Uma delas é que isso ocorreu porque o Templo de Salomão foi destruído, outra diz que isso só voltará a acontecer quando forem obedecidos os ritos relacionados a purificação usando-se as cinzas da "vaca vermelha" mencionadas no Antigo Testamento no tempo de Moisés e inclusive no Alcorão, outra teoria diz que a profecia só poderá se manifestar em Jerusalém e em nenhum outro lugar. Mas Abuláfia estava convencido de que sua missão era disponibilizar esses métodos para aqueles que pudessem alcançá-los e fossem merecedores de fazê-lo. 
   Pela própria natureza dessas técnicas, elas acabam induzindo o indivíduo que as pratica a visões e experiências que podem ser demais para pessoas despreparadas e levarem-o a insanidade. Pelo que se sabe dos métodos que Abuláfia praticava e sobre os quais ele mesmo escreveu, esses envolviam estados meditativos, entoação de letras e combinações de letras hebraicas junto a movimentos específicos com a cabeça de acordo com a posição dos pontos vocálicos e também haviam métodos nos quais se permutava palavras escrevendo-as. Em um extrato do livro "A Rosa dos Mistérios" Abuláfia diz: "Através das combinações de letras e da meditação, tive várias experiências."
   O que mais impressiona em relação a profecia sem dúvida são os relatos sobre os "milagres". O profeta Elias fez fogo cair dos céus para consumir uma oferenda, profetizou acertadamente sobre de que maneira certos indivíduos morreriam, fez fogo cair dos céus contra os que foram enviados para levá-lo ao rei, foi alimentado por dias no deserto por pães que lhe eram trazidos por corvos e por fim foi "arrebatado" (a tradição afirma que ele não morreu, assim como Enoque e que continua vivo até hoje se manifestando para certos adeptos, tema pra outro futuro post). Eliseu seu discípulo realizou outros tantos feitos, multiplicando óleo e pães, fazendo ressuscitar o filho morto de uma viúva e profetizando sobre o futuro do rei de Israel em relação aos inimigos militares. Jesus reproduziu muitos desses milagres e ainda maiores para espanto dos seus contemporâneos. Ilustração representado o profeta Elias sendo alimentado pelos corvos:

   Ilustração representando o profeta Eliseu ressuscitando o filho da viúva:


   O estado de profecia é um estado mental diferente do estado mundano comum, é um estado especial no qual o indivíduo está apto a ver o que não se enxerga no plano físico comum, um estado de união com a mente divina. Mas para provar que existem sim métodos para se alcançar um estado próximo a esse vou citar dois exemplos. Um deles é relacionado ao profeta Elias. No comentário de Aryeh Kaplan do livro "Sêfer Yetsirá" versão GRA capítulo 1 terceira parte há um trecho que diz: "na circuncisão da língua e na circuncisão do membro". Kaplan comenta sobre o significado mais profundo da circuncisão, a retirada do prepúcio a pele que envolve a glande do pênis de acordo com a tradição judaica iniciada por Abraão. Ele fala sobre a canalização da energia sexual para propósitos mais elevados e diz que uma das posturas mais usadas para propósitos meditativos avançados pelo profeta Elias era colocar a cabela entre os joelhos, assim ele concentrava a energia espiritual oriunda da energia do órgão sexual. Está no primeiro livro de Reis cap. 18 versículo 42:

   "Voltou Acab para comer e beber, enquanto Elias subiu ao cimo do monte Carmelo, onde se encurvou por terra, pondo a cabeça entre os joelhos."

   Dentro do contexto da narrativa, Elias fez isso para saber se iria chover, após uma seca que durava anos na região. Tal como ele previu, assim aconteceu, mesmo que naquele momento houvesse apenas uma minúscula nuvem nos céus. Outro exemplo de método usado para se induzir a esse estado mental é relacionado ao profeta Eliseu. Os reis de Israel marchavam contra o rei de Moab, mas faltou água para os homens e para os animais de montaria, por isso eles procuraram Eliseu que estava ali perto. Eliseu pediu que um tocador de harpa viesse até ele. A indução a estados mentais elevados pela música é bem conhecida de outras tradições. Esse relato está no Segundo Livro de Reis cap. 3 versículo 15:

   "'Mas agora trazei-me um tocador de harpa'. Apenas fez o tocador vibrar as cordas, veio a mão do Senhor sobre Eliseu."

   Essa expressão "veio a mão do Senhor" sobre fulano é carregada de significado mais profundo como o Zohar e o Midrash em muitos pontos explicam essas muitas expressões bíblicas que costumam passar despercebidas pela maioria dos leitores. Assim, encerro esse post falando sobre o estado de profecia um estado mental especial que pode ser induzido se o adepto seguir certas técnicas. 

sábado, 11 de agosto de 2018

O  GOLEM  NO  MISTICISMO  JUDAICO

   Olá pessoal! Aproveitando o gancho do post anterior sobre o Sêfer Yetsirá, nesse vou falar sobre o "golem" um tipo de "servidor" místico criado do barro e animado pelo adepto. 
   Existem muitas referências desencontradas e exageradas sobre esse tema acredito que em grande parte porque o golem é um tipo de arquétipo do inconsciente coletivo assim como vampiros, e as pessoas são muito inclinadas a romancear esses assuntos, mas, para ter uma noção bem embasada sobre os princípios relativos ao golem recomendo que busquem no meu livro "O Conhecimento da Cabala" link á direita do blog, onde expliquei de modo claro baseado nas minhas pesquisas.
   A palavra "golem" significa "matéria-prima" em hebraico, sua raiz é a mesma da palavra "adam" que significa "terra vermelha" ou "argila" em hebraico. A maioria dos que começam a pesquisar esse assunto acabam encontrando logo de início a tradição que diz que o rabino Judá Loew ben Betsalel também conhecido como Maharal de Praga (1525-1609) criou um golem para proteger o gueto judeu de Praga, República Tcheca (na época chamada Morávia) dos ataques de anti-semitas. Quanto ao fim desse golem algumas narrativas dizem que ele saiu do controle e foi desativado pelo Maharal, outras dizem que ele desativou a criatura com calma após perceber que não era mais necessária e já tinha cumprido seu propósito. Veremos adiante mais sobre o Maharal. 
   Um trabalho que eu recomendo para quem deseja se aprofundar nesse tema é o livro "Golem-Jewish Magical and Mystical Traditions" de Moshe Idel, pesquisador judeu de origem romena nascido em 1947. Quando passou pela Universidade Hebraica de Israel Idel estudou com Gershom Scholem amplamente reconhecido como o maior especialista em textos e tradições judaicas da era moderna. A tese de doutorado de Idel foi sobre Abraham Abuláfia (1240-1291) um dos maiores cabalistas do passado. Posteriormente Idel publicou vários livros sobre temas relacionados ao misticismo judaico. Foto de Idel:
   
  O livro dele sobre o golem:

  Embora o golem seja ligado a tradição judaica e ao livro Sêfer Yestisrá, existem paralelos em várias outras tradições. Um desses paralelos são os "uchebts" do antigo Egito, estátuas que eram colocadas nos túmulos e impregnadas com um tipo de "vivificação" para teoricamente servirem ao morto no além, eram os "servidores" projetados para ajudarem os mortos. O conceito de "servidor" é bastante conhecido do pessoal da "magia do caos" são entidades criadas astralmente e energizadas pelo adepto para cumprirem determinadas tarefas, trata-se de uma técnica antiga, pois também o Frabato (Frantishek Von Bardon 1909-1958) mencionou técnicas semelhantes em seu livro "Magia Prática-O Caminho do Adepto" nessas o adepto escolhe um objeto para "fixar" a essência do servidor criado. Outro paralelo é a "cabeça falante", já haviam técnicas assim no Antigo Egito. Tal feito foi realizado por Alberto Magno (1193-1280) conhecido monge alemão muito afeito as ciências ocultas. Após "fixar" o espírito na cabeça inanimada, essa começou a falar muitas coisas indiscretas, o que levou seu discípulo Thomás de Aquino a fazê-la em pedaços. Assim fica claro que técnicas semelhantes existem em outras tradições fora da judaica.
   A criação do golem está intimamente ligada ao livro Sêfer Yetsirá, porém, esse não é o principal objetivo do Sêfer Yetsirá, é um "subproduto". A criação do golem pelo adepto era considerado a prova de que ele dominou perfeitamente todo conteúdo da obra e também uma prova de grande sabedoria e santidade. Mas longe de servir para propósito de vaidade, a criação do golem físico e animado só deve ser tentada em determinadas circunstâncias e com permissão do alto. 
   Eu já havia mencionado em outro post intitulado "O CONHECIMENTO INICIÁTICO DE ABRAÃO" que certas interpretações rabínicas do trecho de Gênesis dão conta que Abraão "criou" servidores em Harã e depois foi para Canaã. Trata-se de uma interpretação bastante obscura. Outra tradição diz que Abraão estudou com o enigmático personagem Melquisedek para conseguir realizar tal feito. Outra diz que Abraão estava interessado em explorar os mistérios do Sêfer Yetsirá mas foi advertido por Deus de que não deveria tentar fazê-lo sozinho, por isso ele estudou três anos com Sem filho de Noé que ainda estava vivo e conhecia segredos antigos. Um trecho do Talmud diz que o rabino Rava (299 d.C-353 d.C) quis estudar o Sêfer Yetsirá sozinho mas foi advertido pelo rabino Zeira que não deveria fazê-lo sozinho e os dois o estudaram juntos por três anos. Quando dominaram o texto criaram o bezerro e abateram-no para comê-lo em comemoração, mas tal ato era pura vanglória tola por isso eles perderam suas habilidades especiais e tiveram que trabalhar duro por mais três anos para recuperar tais capacidades. Outro trecho do Talmud diz que Rava criou um "homem" e o enviou a Zeira, mas como ele não era capaz de falar em resposta a Zeira, esse percebeu que era um golem e disse: "-Vejo que você foi criado por um de nossos companheiros, retorne ao pó." e desativou o golem. Embora raro na tradição cabalística escrita, existe sim algumas descrições de métodos de criação de golem, uma foi feita pelo rabino cabalista Eleazar de Worms (1176-1238) em seu livro "Perush 'al Sêfer Yetsirá" que são comentários ao tradicional tratado cabalista. Esse livro foi republicado em Mântua na Itália em 1562. Outra descrição escrita para a criação do golem foi feita pelo rabino Naftali Bacharach do séc. XVII em seu livro Emec HaMélech. Aryeh Kaplan em sua versão comentada do Sêfer Yetsirá registra dois trechos em hebraico de instruções para a criação de um golem do rabino Eliezer Rokêach e do livro Emec HaMélech.
   No meu livro "O Conhecimento da Cabala" eu descrevi como seria a hipotética técnica para a criação do golem de acordo com os comentários de Aryeh Kaplan. Antes de mais nada deve haver uma motivação justa e pura da parte dos adeptos. Não se deve tentar sozinho essa tarefa mas acompanhado de outro adepto. Há as purificações, orações e jejuns semelhantes as recomendadas aos interessados em evocações ritualísticas de espíritos vulgo "magia cerimonial". A terra usada da fabricação do corpo do golem deve ser virgem, nunca usada pra outro propósito e a água deve ser direto de uma fonte e não deve ter permanecido em um recipiente por longo tempo. O corpo do golem hipotético deve ser moldado pelos adeptos, e o "corpo astral" dele deve ser criado pelos adeptos através das permutações de letras indicadas pelo Sêfer Yetsirá e enxertado no corpo físico da criatura. Há a possibilidade da criação de um golem feminino também mediante a observação de detalhes específicos. Assim é teoricamente dado a vida a criatura.
   Voltando ao já citado Maharal de Praga, esse é o mais conhecido das tradições relativas ao golem. Praga na República Tcheca da época dele era uma cidade que respirava misticismo, haviam postulantes a alquimistas, astrólogos, e cabalistas por toda parte. Mas a história de que ele teria criado o golem só apareceram registradas em coletâneas de histórias populares em alemão no séc. XIX por isso há muitas dúvidas. Certamente o Maharal era um conhecedor da cabala, ele cita certos elementos de misticismo em seus livros embora não sejam exclusivamente de misticismo. Segundo uma das narrativas, o gueto de judeus de Praga estava sofrendo ataques das pessoas que acreditavam que os rabinos sacrificavam crianças cristãs em suas celebrações. O Maharal teve um sonho a noite relacionado as letras e compreendeu seu significado. Junto com seu discípulo e seu genro eles se prepararm, se purificaram e pegaram barro do rio Modava que corta Praga. Ao concluir a criação do Golem o Maharal disse ao golem que ele se chamaria Yossl e que fora criado para obedecer estritamente suas ordens nada mais, e então o vestiram com roupas normais. O golem passava como um homem comum sem chamar atenção, apenas não respondia as perguntas dos outros, por isso os moradores de Praga o chamaram de "Yossl, o mudo". Quando o Maharal achava que ele deveria intervir para ajudar um judeu vítima de perseguição dava-lhe ordens e esse as cumpria. Por fim, após alguns anos, o Maharal concluiu que ele tinha cumprido seu papel e desativou o golem em um lugar oculto. Outras narrativas mais extravagantes dizem que o golem saiu do controle e foi desativado ás pressas. O Maharal soube que um antepassado seu já tinha criado um golem também. Estátua do Maharal em Praga representando ele com o golem moldado:

   O resto são romances que caíram no gosto popular. Como o golem é um tipo de servidor trazido á vida pelo adepto, é usado como arquétipo de "vida artificial" como no caso do homúnculo citado pelo alquimista Paracelso. Também o Frankstein de Mary Shelley deve ter sido em parte baseado no golem. A própria narrativa bíblica da criação de Adão faz dele (ou nós) como um tipo de golem. Em 1920 foi lançado um filme "Der Golem, Wie Er In Die Welt Kam" em que o diretor mesmo interpretou o golem, bem estereotipado tal obra, imagem do filme:

  O episódio 15 da quarta temporada da série "Arquivos X" gira em torno de um golem criado por um judeu para se vingar das pessoas que mataram seu genro. Nesse episódio é mencionado o Sêfer Yetsirá que foi colocado na cabeceira do corpo do falecido genro e pega fogo quando os agentes do FBI o pegam:

  Tem aquele jogo de palavras "emet" e "emt" escrito em hebraico que desativa o golem quando uma letra é apagada:

   E o golem desse episódio tem a aparência igual a do falecido genro do judeu, ele se parece mais com um zumbi ou Frankenstein! Ficou bem tosco!:

   No quarto episódio da décima oitava temporada da animação "Os Simpsons" também aparece um golem. Nesse episódio ele estava sendo guardado pelo Krusty o palhaço (que é judeu askenazi) e o Bart se apropria dele. Krusty conta que esse golem tinha sido criado por rabino de Praga em 1600 para ajudar contra a perseguição dos judeus, clara referência ao Maharal. Veja a cena da criação desse golem:

   O visual desse golem dos Simpsons é exatamente o mesmo do golem do filme alemão de 1920. Note uma esfera armilar e um diagrama da árvore da vida ao fundo da imagem acima.
   Também há um golem no décimo terceiro episódio da oitava temporada do seriado Sobrenatural ("Supernatural" em inglês). Nesse episódio o golem foi criado na época da Segunda Guerra Mundial por uma sociedade secreta de judeus para combater a Sociedade Thule (que realmente existiu). O golem do seriado Sobrenatural:

   A sociedade Thule no seriado:

   Tanto nesse golem de Sobrenatural quanto no dos Simpsons é retratado que as ordens eram dadas ao golem através de pergaminhos colocados na boca dele (no do Sobrenatural é dito que aquele que o controla deve escrever seu nome no pergaminho):

   Concluindo, os romancistas adoraram explorar o tema do golem e ainda o fazem. É mais um caso em que um fragmento de conhecimento oculto cai no gosto das massas e é apresentado de maneira bem deturpada.


quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O  SÊFER  YETSIRÁ

   Olá a todos! Nesse post vou falar um pouco sobre o mais antigo e também misterioso texto base dos conceitos cabalísticos o "Sêfer Yetsirá" ás vezes grafado como Sêfer Ietsirah (significa "Livro da Formação" ou "Livro da Criação").
   O texto em si é pequeno seja qual for a versão, pois existem várias, e a data em que surgiu e quem o escreveu são desconhecidos. Na verdade se enveredar pelas muitas especulações e lendas que cercam esse livro pode ser um caminho labiríntico e confuso, levando o pesquisador a pistas nem sempre conclusivas, mas, ainda assim constitui uma tarefa tentadora, por vezes mais interessante do que se aprofundar no texto em si e os ensinamentos que ele encerra.
   Seguindo antigas tradições, muitos cabalistas creditam como sendo seu autor o patriarca Abraão e no fim do texto comumente se declara que foi feito por Abraão. Para saber mais sobre os atributos ocultos desse patriarca recomendo aos leitores darem uma olhada em outro post desse mesmo blog intitulado "O CONHECIMENTO INICIÁTICO DE ABRAÃO". Se se considerar Abraão como seu autor então sua data remonta a cerca de 2600 a.C, é uma antiguidade respeitável. Entretanto, as classificações das letras hebraicas presentes no texto e as letras em si são relativamente modernas o que exclui Abraão como seu autor pois esse desconhecia essas letras hebraicas "modernas". Mas pode-se especular que ele tivesse um conhecimento de técnicas semelhantes as descritas nesse livro, e que tal conhecimento pertencesse a outros grupos de ocultistas da época dele. 
   Algumas fontes sugerem que esse livro já fosse conhecido na época em que foi formulado o Talmud, meados do séc. II d.C. e que o texto semelhante as versões atuais tenha sido elaborado por um rabino daquele período (há quem acredite que seu verdadeiro autor seja o rabi Akiva). Existem comentários relativos a esse texto do séc. VI e manuscritos dele datando do séc. X. Sua antiguidade, portanto, é coisa comprovada.
   Como ele circulou por muito tempo apenas como manuscrito, existiram muitas versões dele, algumas até mesmo com conteúdo que não se alinham umas com as outras. Mas atualmente existem quatro versões que são mais levadas em consideração pelos cabalistas são elas: Versão Curta (a mais antiga), Versão Longa, Versão Saadia (denominada dessa forma por ser atribuída da Saadia Gaon 892-943 d.C. um dos líderes da escola rabínica da Babilônia na época) e Versão Gra (essa versão é resultado da edição de Moisés Cordovero conhecido como RAMAC 1522-1570 d.C. que reuniu as melhores versões que teve acesso. Depois tal versão passou pela revisão de Isaac Luria conhecido como ARI 1534-1572 d.C. e por fim passou pela revisão do Gaon de Vilna conhecido como GRA 1720-1797 d.C. por isso essa versão ás vezes é conhecida como versão "Gra-Ari"). 
   Sobre o conteúdo da obra, o Sêfer Yetsirá geralmente tem seis capítulos (exceto a versão Saadia que tem oito capítulos) logo nos primeiros se apresenta vários fundamentos da cabala e menção a séfiras. Há uma alusão a classificação das letras hebraicas em várias categorias e é feita associação delas a certos elementos e astros. Muitos trechos são claramente revisões de assuntos já mencionados em trechos anteriores. Nos últimos trechos há um enfoque a astrologia e menção ao "Teli" cujo verdadeiro significado permanece em aberto permitindo múltiplas interpretações embora as mais aceitas sugiram que se refere a constelação de Draco. O texto em si pode ser confuso para quem se propõe a estudá-lo sem nenhuma orientação. Na verdade o que confere embasamento para o estudante que inclusive queira levar alguma referência do texto para a prática são os comentários dos cabalistas, ter o texto "cru" sem comentários equivale a ter uma arma de fogo sem as balas. A versão que eu mais recomendo é a versão comentada de Aryeh Kaplan (1934-1983) publicada pela editora Sêfer:
   Essa edição apresenta o texto em hebraico da versão GRA e comentários referentes a essa versão além do texto das outras versões Curta, Longa e Saadia. Kaplan apresenta comentários embasados nos textos e ensinamentos mais tradicionais do judaísmo, é uma edição admirável. Quanto ao propósito das técnicas aludidas no texto esses são muitos. Mesmo se o pesquisador quiser consultar versões mais antigas em inglês como as do fim do séc. XVII e XIX encontrará variações assim como também nas muitas versões em hebraico. O ideal é o adepto se apoiar em uma só versão para embasar suas práticas, pois, elas podem induzir a caminhos contraditórios como por exemplo na parte em que se projeta um cubo hipotético com as 22 letras hebraicas ocupando cada uma uma área do cubo, a posição das letras está em locais diferentes nas várias versões. Cada texto do Sêfer Yetsirá é um sistema completo, tentar conciliar as variações das várias versões pode não dar certo e não servir como embasamento, apenas gerar um amontoado de insinuações pseudo-místicas confusas e sem propósito. 
   A prática mais lembrada relacionada a esse texto e também a mais espantosa é relativa a criação do "golem" um tipo de servidor animado criado a partir do barro. Entretanto, todas as fontes dizem que essa não é a principal finalidade do texto, apenas um exemplo de seu uso realizado com sucesso pelo adepto que domina seu conteúdo. Além disso, existem muitas técnicas que fazem paralelo de tal realização sem qualquer relação com o Sêfer Yetsirá. O próprio conceito de golem possui paralelos em muitas outras tradições e não é exclusividade do Sêfer Yetsirá ou da tradição judaica embora o caso mais conhecido de tal feito seja atribuído ao rabino Judá Loew ben Betsalel conhecido como Maharal de Praga (1512-1609). A atribuição da criação do golem pelo Maharal só apareceu registrada em histórias escritas em alemão no séc. XIX e aquele período em que ele viveu era uma época de muito misticismo, Praga na República Tcheca em especial era um centro de esoterismo estando repleta de astrólogos, cabalistas e aspirantes a alquimistas. Demanda outra pesquisa mais aprofundada registrar as menções ao golem na tradição judaica que remontam ao patriarca Abraão e passam pelos grandes rabinos, mas, abordarei esse assunto em outro post futuro. Seja como for, as lendas relativas ao golem caíram no gosto das gerações modernas e ele acabou virando um "ícone pop" presente em muitas obras de ficção modernas, o que também é matéria para próxima postagem.
   Concluíndo, longe de ser um texto com apenas uma finalidade, o Sêfer Yetsirá apresenta muitos princípios cabalísticos e indicação de várias técnicas para se pôr em prática. Algumas dessas técnicas podem ser extremamente complexas como a combinação vocalizada das 22 letras hebraicas combinadas ao Tetragrama e outras que levariam horas para serem concluídas. Tão complexo como esse exemplo é o chamado 231 portões que consiste na visualização das 22 letras dispostas em um círculo para ser visualizado tridimensionamente com as letras de pé e ligando-as entre si por linhas retas. Tais técnicas podem gerar um tremendo potencial, mas, sem orientação e foco tais práticas podem não levar a nada ou causar prejuízo ao praticante. O que o texto oferece são ferramentas e fundamentos que para os adeptos esclarecidos são como verdadeiras dádivas e tratados com grande reverência.