sexta-feira, 3 de julho de 2020

OS  CRIADORES  DE  GOLEMS

   Olá pessoal! Nesse post vou falar sobre histórias de alguns indivíduos que teriam realmente criado um golem, ou tentado alguma variação.
   Eu já havia feito um post aqui nesse mesmo blog de título "O GOLEM NO MISTICISMO JUDAICO" no qual eu falei de modo geral sobre o golem incluindo sua presença na ficção e cultura pop, mas, aqui nesse post vou falar especificamente sobre relatos que envolvem a criação de golems.
   Naquele post eu havia indicado um bom texto de referência sobre o assunto "Golem: Jewish Magical and Mystical Traditions on the Artificial Anthtropoid" de Moshe Idel. Fiquei feliz de encontrar um vídeo relativamente recente de 2019 de uma palestra de Moshe Idel, é satisfatório ver um erudito como ele que mesmo com a idade atual está bastante lúcido e ativo. Sobre o golem, resumidamente trata-se de uma criatura feita de barro com aparência humana e que ganha vida através das artes do Sefer Yetsirah, clássica obra cabalística. Entretanto, o Sefer Ystsirah não é uma "receita de golem", a criação do golem é um subproduto do Sefer Yetsirah, realmente é um livro pequeno, mas, abrangente, certas técnicas presentes nele podem ser usadas e aplicadas de muitas formas diferentes, a criação do golem é apenas uma delas. Como se trata de uma técnica de altíssimo nível, poucos estão aptos a realizá-la com sucesso, e, incautos podem ser seriamente prejudicados por um mínimo erro. Vou tentar seguir uma ordem cronológica nos relatos a partir daquele considerado o primeiro criador de golem.

ABRAÃO

   O patriarca do judaísmo é considerado como o primeiro homem a explorar os mistérios do Sefer Yetsirah. A interpretação rabínica diz que Abraão "criou almas em Harã". Interpretações dão conta que Harã era um local de idolatria, ou seja: adoração a estátuas. Por isso se interpreta que Abraão "criou almas" ao converter as pessoas para a adoração ao Deus único, "criar almas" seria o equivalente a convertê-las. Outro ponto em que se cita Abraão como apto a "criar" é na parte em que se diz que foi acrescentado a letra "he" a seu nome. Essa letra pode ser considerada um nome de Deus resumido, dessa forma Abraão tornou-se um criador em potencial também. Pouco conhecidas são as obras de caridade de Abraão, segundo a tradição ele criou uma hospedaria onde recebia viajantes lhes dando cama e comida sem cobrar nada por isso. Depois que os viajantes se alimentavam Abraão pedia a eles para proferirem uma benção em agradecimento. Os viajantes perguntavam em nome de quem deviam agradecer, ele respondia ao Deus do universo. Deus recompensou Abraão dizendo: "Meu nome não é conhecido entre minhas criaturas, e você tem feito ele ser conhecido entre eles. Eu vou recompensar você fazendo você ser associado a Mim, criador do mundo." Por isso está escrito: "E ele abençoou ele e disse: Bendito seja Abraão por Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra!" Uma interpretação diz que Abraão se sentou sozinho e meditou no Sefer Yetsirah, mas não conseguiu entender nada. Então uma voz celestial lhe disse: "Você está tentando se igualar a Mim? Eu sou aquele que criou o Sefer Yetsirah e dominou-o, mas, você por si mesmo não pode entendê-lo. Tome um companheiro e medite nele junto, assim você vai compreendê-lo." Então Abraão foi até seu professor, Sem, filho de Noé, e ficou com ele por três anos. E meditaram nele por três anos, após os quais eles puderam criar tudo que desejassem. Desde então ninguém pode dominar o Sefer Yetsirah sozinho, é necessário estudá-lo com outro, e apenas após três anos os estudantes se tornam aptos a criar algo. Outra interpretação dos rabinos que corrobora é sobre a fórmula "behibar'am" (como ele criou) que transpondo a ordem das letras gera "be-Avrham" (por Abraão). Abraão transmitiu o segredo do Sefer Yetsirah para seu filho Isaac, e esse por sua vez a Jacó e assim por diante. 

OS FILHOS DE JACÓ

   Uma interpretação rabínica diz que os filhos de Jacó, pelas artes do Sefer Yetsirah puderam criar novilhos que abateram para comer e moças (golens femininos) com os quais se uniram sexualmente. José, então adolescente e ingênuo, viu aqueles atos e pensou que eles estavam cometendo graves pecados ao comer o novilho sem fazer o abate de acordo com a tradição, ao se unirem sexualmente a mulheres desconhecidas e também a tratar mal os filhos das concubinas de Jacó Bilá e Zilpá. Essas seriam as "más notícias" que José levou a seu pai sobre o comportamento dos outros irmãos, conforme alude Gênesis cap. 37 versículo 2:

   "Eis a história da descendência de Jacó: José, ainda jovem, com a idade de dezessete anos, apascentava o rebanho com seus irmãos, os filhos de Bilá e os filhos de Zilpá, mulheres de seu pai, e ele contou a seu pai más notícias sobre seus irmãos."

   José ainda não havia recebido esses conhecimentos relativos ao Sefer Yetsirah por isso não sabia que não havia transgressão nos atos de seus irmãos. O novilho de três anos que era criado por essas artes não requeria um abate cerimonial, é possível criar não apenas um golem na forma de homem mas também na forma de mulher depende da combinação de letras usada em momento específico, e esse "golem feminino" não é considerado como uma mulher real portanto não se considera errado manter relações. E a hostilidade dos irmãos de José com os filhos das concubinas de Jacó se devia a restrição de que esses conhecimentos não devem ser ensinados aos filhos dos servos mas apenas aos mais nobres dos filhos legítimos. Posteriormente supõe-se que José tenha recebido tais conhecimentos também.

BETSALEL

   Esse é um caso em que técnicas do Sefer Yetsirah aparentemente não foram usadas para se criar golens ou animais. No meu outro blog "ricardodias7.blogspot.com" no post de título "A CIÊNCIA DA FORMA, DA MATÉRIA E A GEOMETRIA SAGRADA" eu mencionei Betsalel filho de Huri da tribo de Judá, hábil artesão que foi escolhido por Deus para ser o principal responsável pela criação do tabernáculo, os objetos do altar e cerimônias e o mais importante: a arca da aliança que ele fez sozinho. Betsalel conhecia técnicas do Sefer Yetsirah, mas, não usou para criar golens e sim para criar esses artefatos especiais, conforme Arieh Kaplan diz em sua versão comentada do Sefer Yetsirah:

   "Os mistérios do Sefer Yetsirah foram usados novamente após o Êxodo quando os israelitas estavam construindo o Tabernáculo no deserto. O Talmud diz que Betzalel foi escolhido para construir este Tabernáculo porque ele 'sabia como permutar as letras com as quais o céu e a terra foram criados'. Tal conhecimento esotérico era necessário, visto que se pretendia que o Tabernáculo fosse um microcosmo, traçando um paralelo simultâneo com o Universo, o domínio espiritual e o corpo humano. Não era suficiente a mera construção de um edifício físico. Na construção o arquiteto tinha de meditar no significado de cada parte e imbuí-las com as propriedades espirituais necessárias."

   Betsalel fez uso de técnicas específicas do Sefer Yetsirah para conferir propriedades singulares aos artefatos e não para criar golems, pois repito: o Sefer Yetsirah não é uma "receita de golem".

JOSUÉ

   Esse é mais um caso em que, segundo interpretações de rabinos, técnicas do Sefer Yetsirah foram usadas, mas não para se criar golems. Essa citação diz respeito ao episódio da destruição das muralhas de Jericó por Josué o homem que recebeu diretamente de Moisés autoridade para liderar os israelitas na árdua tarefa de estabelecê-los na terra prometida. Jericó era uma cidade fortificada e o exército dos israelitas não puderam penetrar nela. As muralhas somente vieram abaixo devido a orientação de Deus a Josué para que junto ao exército dessem voltas nas muralhas por sete dias com a arca sendo levada na frente por sete sacerdotes e no sétimo dia dessem sete voltas quando finalmente pudessem clamar alto, assim elas cairiam conforme o cap. 6 de Josué:

   "Jericó, cidade murada, tinha se fechado diante dos israelitas, e ninguém saía dela nem podia entrar. O Senhor disse a Josué: 'Vê, entreguei-te Jericó, seu rei e seus valentes guerreiros. Dai volta á cidade, vós todos, homens de guerra; contornai toda a cidade uma vez. Assim farás durante seis dias. Sete sacerdotes, tocando sete trombetas, irão adiante da arca. No sétimo dia, dareis sete vezes volta á cidade, tocando os sacerdotes a trombeta. Quando o som da trombeta for mais forte e ouvirdes sua voz, todo o povo soltará um clamor e a muralha da cidade desabará. Então, o povo tomará de assalto a cidade, cada um no lugar que lhe ficar defronte. (...)
   O povo clamou e os sacerdotes tocaram as trombetas. E logo que o povo ouviu o som das trombetas, levantou um grande clamor. A muralha desabou. A multidão subiu á cidade, sem nada diante de si."


   Podemos interpretar esse feito de diversas formas, como por exemplo entendendo que Josué não recebeu orientação direta de Deus como uma voz lhe dizendo para fazer isso, mas, que ele pode ter tido uma inspiração que lhe deu a ideia de aplicar um "exercício" do Sefer Yetsirah para colocar as muralhas de Jericó abaixo. No capítulo 2 parte 4 do Sefer Yetsirah consta:

   "Vinte e duas letras Fundação:
   Ele as colocou em um círculo como um muro com 231 portões.
   O círculo oscila para frente e para trás.(...)"

   Atente que essa é uma sugestão e não uma opinião definitiva, mesmo porque esse exercício em particular é usado para outra coisa seguindo uma prática "tradicional" do Sefer Yetsirah. Mas, assim como um martelo pode ser usado para construir algo ele também pode ser usado para destruir. Mais um caso em que técnicas do Sefer Yetsirah não foram usadas para criar golems.

O PROFETA JEREMIAS E BEN SIRÁ

   O profeta Jeremias teria vivido em meados de 600 a.C. ele soube que Jerusalém cairia nas mãos de Nabucodonosor II que destruiria o templo. Segundo a tradição, Jeremias teria criado um golem mas não sozinho e sim com a ajuda de seu filho Ben Sirá. A história do nascimento de Ben Sirá é bastante curiosa, não se deu em circunstancias normais, nem ele era uma criança normal. Isso é o que Arieh Kaplan diz:

   "É possível que tenha havido mais de uma pessoa com o nome Ben Sirá, mas o desta tradição era claramente o filho de Jeremias. Há uma tradição curiosa a respeito de seu nascimento. Jeremias havia sido abordado por homosexuais na casa de banhos e, como consequência, havia experimentado uma ejaculação na banheira. Seu sêmen permaneceu viável e, quando sua filha usou depois a mesma banheira, foi fecundada por ele, dando á luz a Ben Sirá. Ben Sirá era, portanto, o filho de Jeremias."

   O nome "Ben Sirá" significa "filho da semente" muito apropriado. A filha de Jeremias se envergonhou por estar grávida sem ter tido relações. Quando a criança nasceu já falava de modo eloquente desde cedo (assim como Jesus). E foi a própria criança que explicou que Jeremias era seu pai. Ben Sirá era um prodígio e se aplicou nos estudos da Torá com afinco até dominar os segredos em tempo record! Essa criança foi levada á corte de Nabucodonosor onde deu valiosos conselhos ao rei sobre vários assuntos, histórias de Ben Sirá tem caráter anedótico no folclore judaico. Moshe Idel na já citada obra faz uma citação sobre Ben Sirá e seu pai Jeremias se engajando na criação de um golem, e eles obtiveram sucesso. A criatura era perfeita ao ponto de falar e raciocinar, tanto que ela mesma se deu conta de que caso esse feito de sua criação se tornasse público as pessoas da época pensariam que criar o homem não foi um ato tão extraordinário de Deus pois outros homens conseguiram criar o mesmo, assim elas menosprezariam a autoridade divina. Por isso a criatura tomou a iniciativa de apagar a palavra em sua testa que a mantinha viva, aquele jogo de palavras "emet" (verdade) se apaga a primeira letra aleph fica "met" (morto) veja:

   "Uma versão sobre a criação do golem é encontrada no livro 'Sefer há-Gematri'ot' uma coletânea de tradições reunidas dos discípulos do rabi Yehuda he-Hassid, ela diz:

   Ben Sirá quis estudar o Sefer Yetsirah. Então uma voz celestial lhe disse; 'Você não pode fazer isso sozinho'. Então ele foi até Jeremias, seu pai. Junto a seu pai Jeremias, eles estudaram por três anos e finalmente criaram um homem e na sua testa foi escrito 'emet' (verdade) como na testa de Adão. E a criatura disse a eles: 'Se o Eterno, louvado seja! Criou Adão, quando ele quis matar Adão, ele apagou a letra de 'emet' e o que restou foi 'met' (morto), mais ainda eu gostaria de fazer isso e você não teria criado um homem, então as pessoas não teriam errado em relação a Ele, como aconteceu na geração de Enoch.' Por isso Jeremias disse: 'Maldito é o homem que descende de Adão!' A criatura disse a ele: 'Reverta a combinação de letras pra trás.' E eles apagaram a letra aleph da sua testa, e imediatamente ele voltou a ser pó."

RAVA E RAV ZEIRA

   Essa narrativa é relativamente bem conhecida dos estudantes. Rava e Rav Zeira pertenciam a terceira geração dos amoraítas, os sábios que editaram o Talmud, viveram em meados do ano 300 d. C. Ao Rava é atribuído o dito "Se os justos quisessem, poderiam criar um mundo". Quanto ao Rav Zeira, ele nasceu na Babilônia (atual região do Iraque), seu pai foi um coletor de impostos do império persa louvado como um dos poucos a exercer essa atividade de maneira honesta. Conta-se que Rav Zeira além de sábio tinha uma enorme capacidade de concentração e domínio do corpo, uma vez por mês ele testava suas habilidades andando descalço sobre brasas de carvão sem sofrer dano algum. Certa vez os outros sábios o distraíram quando ele fazia isso e por isso ele queimou os pés. Desde então passaram a apelidá-lo de "pequeno homem dos pés queimados"! Zeira ganhava a vida como mercador de linho e viajava frequentemente de Israel para a Babilônia. Segundo Moshe Idel:

   "Rava também quis entender o livro (Sefer Yetsirah) sozinho. Então o Rav Zeira disse a ele: 'Está escrito: Uma espada pende acima do solitário, e ela pode cair. O que equivale a dizer que uma espada está acima do estudante que estuda sozinho e se ocupa por si mesmo com os mistérios da Torah. Vamos nos unir e nos ocupar com o Sefer Yetsirah.' Então eles foram e meditaram nele por três anos e conseguiram entender ele. E quando eles conseguiram, criaram um bezerro e o mataram para celebrar a conclusão dos estudos."

   De acordo com a história, depois que mataram e comeram o bezerro para comemorar em uma festa, eles perderam seus poderes. Isso porque estavam sendo fanfarrões e se vangloriando. Por isso tiveram que trabalhar duro por mais três anos para recuperarem esse domínio. O versículo 196 do Bahir oferece comentários sobre o assunto, veja:

   "Disse o Rava: Se os justos quisessem, podiam criar um mundo. O que impede? Vossos pecados, conforme está escrito (Isaías 59:2) 'Apenas os vossos pecados vos separam de vosso Deus'. Por isso, não fora pelos vossos pecados, não haveria diferenciação alguma entre vós e Ele.
   Observamos, portanto, que Rava criou um homem (golem) e o enviou ao Rav Zeira. Dirigiu-lhe a palavra, mas não obteve resposta (o golem era mudo e Rav Zeira o fez retornar ao pó). Não fora pelos nossos pecados, seria capaz de responder.
   E de onde responderia? Da sua alma.
   O homem tem uma alma para colocar nisso?
   Sim, conforme está escrito (Gênesis 2:7): 'E Ele soprou em suas narinas uma alma de vida'. Se não fosse pelos vossos pecados, o homem, portanto, teria uma 'alma de vida'. Por causa de vossos pecados, todavia, a alma não é pura.
   Essa é a diferença entre vós e Ele. Está, portanto, escrito (Salmos 8:6): 'E Tu o fizestes um pouco menos que Deus'. 
   Qual é o significado de 'um pouco'? É porque o homem peca, e o Santo Abençoado não. Abençoado seja Ele e abençoado seja Seu nome para todo o sempre, Ele não tem pecados."

   Portanto, enquanto o golem criado por Jeremias e seu filho era perfeito até demais a ponto de antever a perversidade dos homens e desejar ser destruído, o golem criado por Rava era imperfeito e não tinha capacidade de falar.

RABI  ISAAC  BEN  ASHER

   Esse é um caso em que estudantes quiseram usar o Sefer Yetsirah para criar algo, mas cometeram um erro crucial no processo e quase morreram. Isso é o que conta Moshe Idel:

   "Uma vez os discípulos do rabi Y. Ben A. estudaram o Sefer Yetsirah, mas eles erraram na direção e afundaram na terra até o umbigo pelo poder das letras. Eles não conseguiram sair e gritaram por ajuda. O rabi Y. disse para eles recitarem as letra na direção correta. Assim eles conseguiram sair."

   Arieh Kaplan no trecho do Sefer Yetsirah onde aparecem os 231 portões faz comentário semelhante, veja:

   "(...)Procedendo em círculo, ele canta as combinações de letras, primeiro aleph com todas as demais letras, depois beit, até que se percorra todo alfabeto. Se alguém deseja destruir a criação, procede em direção oposta.
   Conta-se também que os discípulos de Riva tentaram usar o Sefer Yetsirah para fazer uma criatura. Mas foram na direção equivocada e se inundaram em terra até a cintura através do poder das letras. Apanhados, gritaram pedindo auxílio. O Riva foi finalmente contactado e fez seus outros discípulos recitarem os alfabetos procedendo na direção oposta, até que os incautos fossem libertados."

   Na nota bibliográfica, Kaplan explica que Riva é a forma acróstica de rabi Ysaac Ben Asher, veja:

   "(Riva) Acrônimo do R. Yits'chac ben Asher, morto em 1132. Scholem, em seu Kabbalah and its Symbolism p. 186, afirma que este acróstico se refere a R. Yismael ben Elisha. No Museu Britânico, MS.754, a abreviatura é R. Ts, que Scholem supõe que pode referir-se a um certo R. Tsadoc." 

   O que exatamente aconteceu com os discípulos de Riva? Como dissemos, há muitas variações de aplicações de técnicas do Sefer Yetsirah, nesse caso aconteceu na parte dos "231 portões". Os discípulos de Riva estavam "recitando" as combinações de letras (há modos de se realizar essa prática sem vocalizar as combinações de letras, apenas mentalmente e visualmente) mas assim o fizeram na direção errada. O estudante tem que estar atento ao fato de que a sequência correta de uso das letras hebraicas é da direita para a esquerda (assim como a escrita árabe), inverso da nossa escrita ocidental rotineira. Por isso, todo processo que envolve as letras hebraicas deve ser feito seguindo elas da direita para esquerda, os discípulos foram da esquerda para direita em círculo, sentido "horário" quando deveriam ter ido no sentido "anti-horário". O poder das letras "desmanchou" o chão sob eles como lama, e eles ficaram imersos até o umbigo. Alguém ouviu seus pedidos de ajuda e o Riva mandou eles recitarem a sequencia de letras na direção oposta a que estavam fazendo, assim puderam sair. As consequências poderiam ter sido fatais. 
   Das descrições escritas sobre métodos de criação de golem existe o encontrado em "Perush 'al Sefer Yetsirá" de Eleazar de Worms (1176-1238) esse foi citado por Moshe Idel. O mestre de Eleazar foi o rabi Yehuda he-Hasid e é dito que o pai de Yehuda, Shemuel he-Hassid criou um golem. Há também o "Emec HaMélech" feito pelo rabi Naftali Bacharach do séc. XVII, esse é um trecho dele em hebraico reproduzido no Sefer Yetsirah comentado de Arieh Kaplan:

   No Talmud, especificamente no "San'hedrin 65b" se diz que o rabi Chanina (também chamado de Hiyya) e rabi Hoshaiyah (também chamado Hoshia) se ocupavam de através do Sefer Yetsirah criar um bezerro de três anos toda sexta feira para abatê-lo e comê-lo no shabat. Arieh Kaplan comenta:

   "O Talmud diz que 'Rabi Chanina e Rabi Hoshia dedicavam-se ao Sêfer ietsirá toda sexta-feira, antes do Shabat, e criavam para si um novilho, e o comiam'.(...)
   Existem muitas interpretações sobre o que exatamente os dois sábios conseguiam criando tal novilho e por que o faziam. Alguns dizem que não criavam de fato um novilho físico, mas sim uma imagem meditativa com tal clareza que a satisfação espiritual era similar à da comida. Um cabalista do quilate de Abraham Abuláfia (1240-1296) sustenta inclusive que sua criação era mística, e não física. O Rashba (Rabino Shelomo ben Aderet, 1235-1310) viu um significado particular no fato de eles se ocuparem daquilo na sexta-feira, o dia da criação original dos mamíferos.(...)"

   Pode ser apenas uma criação meditativa do bezerro e não física, mas, há uma lógica por trás disso. A tradição judaica diz que todo judeu tem a obrigação de celebrar o shabat como um dia especial, e ambos rabi Chanina e rabi Hoshia eram pessoas humildes, eles trabalhavam como sapateiros por isso não deviam ter condições de adquirir tanta carne para a celebração do shabat e recorriam a métodos do Sefer Yetsirah para cumprirem sua obrigação. Seria um caso em que a falta de dinheiro era compensada pelo alto grau espiritual que permitia aos sábios realizar essa proeza.  

BAAL SHEM TOV

   Já falei aqui nesse blog sobre a vida desse importante cabalista que criou o movimento chassidista no post de título "BAAL  SHEM TOV E O MOVIMENTO CHASSIDISTA". Muitas histórias místicas são atribuídas a Baal Shem Tov (1698-1760) cujo nome verdadeiro era Israel Ben Eliezer, mas, sobre a criação de um golem é menos conhecida. É significativo que em certo ponto da  vida de Baal Shem Tov sua renda vinha principalmente da escavação e venda de argila (a matéria da qual é feita o golem). Veja o que Moshe Idel diz a respeito em sua obra:

   "O rabi R. Zevi Askenazi conhecido como he-Hakhan Zevi descendente do Baal Shem Tov disse a seu filho rabi Jacob Emden que o Baal Shem criou um golem. Jacob Emden diz em sua autobiografia que seu pai lhe contou:
   'O golem não falava e era servo do Baal Shem. E quando o rabi viu que as mãos da criatura ficaram maiores e mais fortes devido ao nome divino escrito em um papel e colocado na testa da criatura, o rabi temeu que a criatura ficasse perigosa e destrutiva. Ele rapidamente arrancou o papel com o nome divino da testa da criatura e essa voltou a ser pó. Mas ela feriu seu mestre quando ele estava tirando o papel.'"  

   São conhecidas as histórias de que Baal Shem expulsou demônios, realizou curas milagrosas e ascendeu aos planos superiores atingindo o estado de "devekut" (união com o divino). Mas sobre ele ter criado um golem é pouco divulgado. Alguém com o nível espiritual dele certamente teria condições de fazê-lo. Sobre as mãos da criatura que teriam crescido e ficado mais fortes, isso se baseia no conceito de que o universo, a criação de Deus continua a crescer e a se expandir, portanto, toda obra que se assemelha a obra divina também tem potencial de crescer. Alguns físicos teóricos realmente acreditam que o universo está em contínua expansão.

GAON  DE  VILNA

   O Gaon de Vilna (Elijah ben Solomon Salman) 1720-1797 de Vilna na Lituânia é mais conhecido como um perito em legislação judaica (halachá), Talmud da Babilônia e de Jerusalém, interpretações da Torah, gramática hebraica e a maioria dos textos importantes do judaísmo do que como estando envolvido em misticismo. Ele ganhou a alcunha de "Gaon" (significa "gênio") pois dominou conhecimentos avançados muito cedo. Aos sete anos começou seus estudos de Talmud com um especialista, a partir dos dez anos continuou estudando sem professores. Mais tarde viajou por várias partes da Polônia e Alemanha. Antes dos vinte já era procurado por outros rabinos para dar conselhos a respeito de halachá. Sua modéstia era tamanha que se recusou a receber o título de rabino embora tivesse evidentemente preparo para tal. Se opôs ao movimento chassidista como herético. Dava palestras apenas para discípulos selecionados. Na obra de Moshe Idel ele menciona que o Gaon quis se envolver na criação de um golem quando era muito jovem, mas que desistiu, veja o trecho:

   "Há uma discussão entre o rabi Hayyim de Volohzim e seu mestre rabi Elyahu, o Gaon de Vilna. Hayyim menciona sobre o Sefer Yetsirah e seu mestre:

   Com relação ao Sefer Yetsirah sua versão estava sempre correta. Eu propus a ele dez diferentes versões do Sefer Yetsirah e ele me mostrou a versão correta a do Ari com apenas um erro de impressão. Quando eu disse que então seria fácil criar um golem, ele respondeu: 'Uma vez eu comecei a criar um golem, mas enquanto eu estava engajado em fazer isso eu vi uma aparição sobre minha cabeça e desisti de continuar dizendo comigo mesmo que os céus queriam me prevenir contra os erros de minha juventude.' Quando eu perguntei a ele quantos anos ele tinha quando fez isso ele respondeu que mal tinha acabado de completar treze anos."

   Realmente, o Gaon foi um gênio se estava em condições de entender algo sobre o processo da criação de um golem com tão pouca idade. Mas ele teve a prudência suficiente para perceber que não deveria continuar, que ainda não estava preparado o suficiente para isso, evitando assim uma tragédia. Sobre sua avaliação das diferentes versões do Sefer Yetsirah que lhe foram apresentadas por seu discípulo, isso acontece porque com relação a textos de conteúdo avançado é costume os rabinos mesmos distribuírem versões espúrias deturpadas intencionalmente para evitar o entendimento desses conhecimentos, apenas os que tem devido preparo sabem distinguir qual seria a versão correta. O Gaon também foi um dos responsáveis pela redação de uma das versões do Sefer Yetsirah realmente respeitada pelos especialistas, a versão chamada "versão Gra" essa versão recebeu esse nome porque passou pela edição de Moisés Cordovero, o RAMAC 1522-1570, depois foi revista por Issac Luria o ARI 1534-1572 e finalmente revisada pelo Gaon de Vilna chamado de GRA, assim essa versão ás vezes é chamada de "versão Gra-Ari".

O MAHARAL

   Chegando finalmente na citação sobre o mais famoso criador de golem o Maharal (rabi Judá Loew ben Betsalel) de Praga Rep. Tcheca 1525-1609. Ele foi extremamente respeitado em sua época e não aceitou o pagamento pela ocupação de rabino pois já tinha meios de se manter graças a negócios bem sucedidos de seu pai. Mesmo se aposentando da ocupação de rabino ele ainda era considerado o líder da comunidade de Praga. Se encontrou em particular com o Imperador Rodolfo II. O Maharal em sua vida foi conhecido como perito em halachá e realmente escreveu livros sobre vários assuntos, mas, sobre ele ter criado um golem para proteger os judeus do gueto de Praga dos abusos isso só veio á publico séculos após sua morte. Segundo Moshe Idel:

   "Em 1909 rabi Judel Rosenberg publicou um livro chamado 'Nifla'ot Maharal' onde descreve o Maharal criando um golem com a ajuda de seu genro rabi Isaac ben Shimshon Katz e seu discípulo rabi Abraham Hayim, e o golem é chamado de Yosl. Essa é a mais famosa história a respeito do golem, mas, não possui comprovação."

   O Maharal escreveu vários livros versando sobre a Torah embora alguns livros e manuscritos tenham se queimado no incêndio de 1689. Ele não era totalmente alheio ao misticismo, na biografia dele feita por Yaacov Dovid Shulman consta:

   "O Maharal ensinou que feitiçaria, que é proibida pela Torá, consiste em 'envolver-se em ritos sobrenaturais que fazem coisas aparecerem e desaparecerem' (Beer Hagolá), ou que permitem que alguém obtenha riqueza ou poder. Também, a pessoa está proíbida de fazer uso de uma criatura de forma não desejada pelos Céus. Assim é proibido consultar um Ov ou Yidoni, pois isso envolve consultar um morto, e o morto deve ficar no outro mundo, não nesse.
   Por outro lado, há coisas que a pessoa tem permissão de fazer. Por exemplo, o Maharal ensinou que 'é de grande sabedoria ensinar uma pessoa como se proteger de forças [espirituais] destrutivas.' Estas técnicas devem ser usadas somente para propósito de 'autoproteção e salvação dos outros'. A pessoa também pode induzir um ser não físico a 'falar ou mostrar alguma coisa. Como isto não envolve nenhum ato fora do comum, não é considerado feitiçaria. A pessoa se conecta a um ser não físico de uma maneira que não causa dano algum.' 'Isto', explicou o Maharal, 'costuma ser acompanhado do ato de unir uma entidade não física por meio de um juramento em Nome de D'eus, tal como alguém que faz uma testemunha jurar em Nome de D'eus ao lhe contar algo.' 'A pessoa tem permissão de amarrar um anjo por meio de um juramento, pois, ás vezes, este é um dos propósitos pelo qual o anjo foi enviado a este mundo.'"

   É possível que essas histórias do Maharal criando um golem tenham sido publicadas anos após sua morte apenas para ganhar publicidade em cima de uma figura muito conceituada em sua época. Mas também é possível que ele realmente tenha feito isso. Não há consenso.
   Por fim, aqui estão algumas histórias de indivíduos que criaram golems, ou se envolveram em variações de técnicas do Sefer Yetsirah. Demanda ser feito um trabalho mais apurado e minucioso a respeito desse grande livro. Um dos grandes fascínios da minha vida é o Sefer Yetsirah. Todo esse lastro de histórias é interessante, mas, é necessário fazer um trabalho destinado a estudantes mais avançados e não apenas oferecer uma visão geral sobre ele. Um estudo sobre as origens do Sefer Yetsirah é um caso á parte, sobre sua estrutura e estilo literário é outro. Trata-se de um texto teórico, filosófico e também prático, mas a parte prática do Sefer Yetsirah costuma ser desconhecida da maioria. Digo por mim mesmo e falando apenas de experiências pelas quais eu passei sem levar em conta qualquer relato de outros, que nele se encontra uma ciência muito avançada, ciência que lhe dá com vibrações, disciplina mental e manipulação de matéria, a estrutura básica do universo. Conheço a maioria dos grimórios consagrados pela tradição e sinceramente não me impressiono com eles. Eles contém "sistemas" que são do gosto e do estilo da época e local dos seus compiladores, e eu não gosto de usar sistemas dos outros emprestado. Pego dos grimórios os elementos básicos de oculto que possuem paralelos em vários outros meios pois são universais, comuns ao oculto em geral. Durante um certo tempo fiz exercícios muito simples do Sefer Yetsirah quase todo sábado. Depois, parti para exercícios mais elaborados e complexos. Mas, parei antes de dar um passo adiante na parte mais avançada, não levei essa prática para o nível seguinte. O ambiente na minha casa é péssimo para exercícios que demandam quietude e concentração, já é muito dar conta de elaborar trabalhos em cima de temas que não devem ser tratados de maneira leviana e ainda por cima publicá-los, disponibilizá-los para o público, isso está além das minhas possibilidades mas eu tento. Os problemas pessoais cotidianos, preocupações e trabalhos por fora matam qualquer chance de estar em um estado mental minimamente apropriado. Mas, quando puder pretendo levar a prática adiante e quando tiver alcançado o resultado que almejo vou sim elaborar um estudo o mais abrangente possível sobre o Sefer Yetsirah destinado a estudantes seriamente comprometidos.