domingo, 8 de maio de 2022

 AS ESCOLAS SECRETAS DA CABALA


    Olá pessoal! Nesse post vou falar sobre como os cabalistas judeus guardaram com tanta restrição certas técnicas e conhecimentos que muitas escolas ou grupos de cabalistas nem chegaram a ter conhecimento umas das outras.

   Hoje em dia muitos conceitos relacionados à cabala são identificados até mesmo pelo grande público que é leigo, embora não se possa dizer que absolutamente tudo a respeito desse corpo de conhecimentos já tenha sido exposto, ao contrário, o principal permanece ainda preservado em grupos muito restritos. A cabala é um amplo acervo de conhecimentos e tem bases sólidas, o que é facilmente encontrado são referências a uma ou outra interpretação, elementos separados, não o todo. Cabala não se trata de "receita de bolo" que possa ser ensinada em uma semana, nem um grimório com técnicas estilo "faça você mesmo" nem tão pouco pode se encontrar tudo a respeito em um único livro, trata-se de interpretações baseadas em conceitos sólidos, mas, que também permitem certa margem de adaptação pelo adepto, uma certa "flexibilização" mas que não se afasta muito dos conceitos originais. Apesar de vários elementos terem se tornados públicos, se dependesse dos rabinos que guardam, absolutamente nada disso viria a público. Na Renascença alguns elementos da cabala vieram à público e foram incorporados pelos ocultistas e literatos cristãos da época, até mesmo em algumas pinturas de Michelangelo e Leonardo Da Vinci há elementos, e Cornélio Agrippa cita alguns conceitos em sua obra "Três Livros de Filosofia Oculta" mas não significa que eles eram cabalistas praticantes ou que tivessem estudado a fundo todo o sistema, apenas pegaram alguns elementos. 

   Para se ter uma ideia do modo restrito como certas técnicas e textos da cabala foram guardados, Aryeh Kaplan em sua versão comentada do Sêfer Ietsiráh menciona que alguns sábios judeus dos primeiros séculos da era Cristã eram proficientes em técnicas práticas do Sêfer Ietsiráh, mas que desconheciam completamente técnicas relacionadas à merkabah (falei resumidamente sobre merkabah no meu canal no Youtube CANAL OCCULT POP link à direita no blog) pois foram mantidas por outra escola esotérica, veja o trecho:

 

   "O Talmud relata que Rabi Iossef conhecia os mistérios da Mercabá, enquanto os 'Anciões de Pumpedita' eram versados nos mistérios da Criação. Rabi Iossef conseguiu que os anciões lhe ensinassem os mistérios da Criação mas não lhes confiou os mistérios da Mercabá.

   Isso indica que os mistérios da Mercabá e do Sêfer Ietsirá eram ensinados por escolas diferentes, e que membros de uma escola não conheciam os ensinamentos da outra. As duas envolviam-se em diferentes disciplinas e tinha-se o cuidado de mantê-las separadas."

 

   Assim sendo, percebe-se que os grupos cabalistas não divulgam completamente suas técnicas, mesmo para outros grupos cabalistas. De fato, houve um período na história em que o conhecimento cabalístico ficou de posse de um pequeniníssimo grupo, e, os demais grupos judeus sequer tinham ideia dos conceitos a respeito. 

   Quando importantes textos de conteúdo cabalísticos são publicados isso acontece porque os grupos cabalistas que preservaram esses textos e possíveis usos práticos deles decidiram que aquele era o momento certo, ou porque estava para ser feita uma importante revelação ou para acelerar a "vinda do Messias" (de acordo com a concepção judaica a vinda do Messias que não foi Jesus seria acelerada com a divulgação de certos ensinamentos esotéricos, a divulgação seria necessária para sua vinda). Um exemplo é a publicação do Bahir o Livro da Iluminação atribuído a Nehunia ben Hakanah sábio e líder de uma escola esotérica do primeiro século da era Cristã. Veja o comentário de Arieh Kaplan no prefácio de sua versão da obra:

 

   "Com o encerramento do período talmúdico, o círculo de cabalistas diminuiu e, em certas épocas, pode não ter ultrapassado uma parca dúzia de indivíduos.(...)

    Por isso não surpreende que eméritos eruditos, como Saadia Gaon (882-942) e Maimônides (1135-1204), nunca tivessem visto o Bahir, ou que o Rabino Yehudá ben Barzilai de Barcelona (1035-1105) não fizesse qualquer menção a ele em seu extenso comentário sobre o Sêfer Ietsirá. O texto era de domínio privado e restrito a uma pequena sociedade secreta, onde pessoas estranhas ao círculo não deviam sequer saber de sua existência. (...)

   Diz a tradição que o Bahir foi preservado por uma pequena escola de cabalistas na Terra Santa (Jerusalém).(...)

   Logo depois, a principal escola cabalística mudou-se para a França-principalmente para Provença. Essa região tornou-se um importante centro de Cabala e lá foi tomada a decisão de publicar o Bahir."

 

   Portanto, não é de se estranhar que um texto de conteúdo cabalístico tão importante tenha se mantido desconhecido por séculos mesmo para importantes cabalistas. O mesmo em relação ao Zohar. Eu não vou entrar em debates e minúcias a respeito de quem seria seu verdadeiro autor, mas, esse Zohar só veio à publico porque a escola esotérica que detinha esses conhecimentos decidiu que era a hora certa de publicar manuscritos dele. O cabalista espanhol Moshe de Leon foi o escolhido para tornar público esse texto. Veja o comentário de Arieh Kaplan a respeito disso em "Meditação e Cabalá":

 

   "O próprio Zôhar provê uma pista, declarando que deveria ser revelado em preparação para a rendenção final, mil e duzentos anos depois da destruição do segundo Templo. Como o Templo foi destruído no ano 69, isto significaria que o Zôhar seria revelado em 1269. A sociedade secreta que foi guardiã destes mistérios confiou esta tarefa ao Rabino Moshe de León, que possivelmente foi membro desse grupo."   

 

   Outro exemplo de como técnicas são mantidas ocultas com tremenda restrição pelos cabalistas é relacionado a técnicas meditativas muito avançadas, técnicas capazes de fazer com que o praticante entre em estado mental semelhante aos dos profetas do Antigo Testamento. Realmente os profetas do Antigo Testamento eram pessoas especiais escolhidas para a missão de transmitir a mensagem divina, mas, também haviam técnicas e escolas que preservavam essas técnicas. Quando o grande cabalista Abraham Abuláfia começou a ensinar seu sistema que também envolvia estados meditativos avançados ele afirmou que não o inventou por conta própria, mas, que usou elementos de avançadas técnicas meditativas que já existiam mas que eram mantidas em segredo e nunca antes tinham sido divulgadas, veja esse trecho de Meditação e Cabalá:

 

   "O próprio Abuláfia escreveu que 'nehum outro cabalista antes de mim escreveu livros explícitos sobre esse assunto.'"

 

   Em muitas referências na tradição cabalística se fala sobre o poder de "nomes divinos" ou "nomes de Deus" e que Moisés teria usado alguns desses nomes para realizar seus grandes milagres. Não se trata de "nomes de Deus" propriamente, mas, sim palavras que encerram funções, conceitos e energias. A pronúncia correta e feita com a entoação e energia correta dessas palavras desencadeariam feitos que seriam considerados absurdos. O conhecimentos de alguns desses nomes e como usá-los permaneceu de posse de um restrito grupo de cabalistas através dos tempos. Veja o que Arieh Kaplan diz a respeito:

 

   "Até mesmo a existência desta sociedade era totalmente desconhecida para os de fora, até que ela finalmente apareceu sob a liderança do Baal Shem Tov.

   De acordo com esta tradição, a Sociedade dos Nistarim (escondidos) foi fundada em 1621 ou 1623, logo após a morte do Rabino Chayim Vital. Seu fundador foi o Rabino Eliyáhu de Chelm (1537-1653), conhecido como Eluyáhu Baal Shem. (...)

   O título Baal Shem significa literalmente 'Mestre do Nome' e, em geral, parece ter sido agraciado àqueles que souberam fazer uso dos Nomes Divinos na Cabalá Prática."

 

   Resumindo, embora pareça através da popularização dessa "cabala pública" que tudo já foi exposto, na verdade uma parte apenas foi exposta (muitas vezes mal interpretada por leigos) e as mais extraordinárias técnicas e textos da cabala prática ainda permanecem guardadas por restritos grupos e possivelmente nunca virão a público estando restrita aos grupos que os preservam.


    

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

 ALGUNS PARALELOS ENTRE A TORÁ E O ALCORÃO

   Olá pessoal. Nesse post vou mencionar alguns paralelos que existem entre assuntos citados na Torá/Bíblia e que também são mencionados no Alcorão. Embora o estilo do Alcorão seja muito distinto e peculiar até mesmo pelo modo como ele foi recebido (foi transmitido oralmente aos poucos, capítulo a capítulo ao longo de cerca de 20 anos a Maomé quando ele entrava em um estado mental alterado, em êxtase) também no Alcorão são citados episódios da Torá e conhecimentos que a Torá parece insinuar. No meu livro recente "Assembleia dos Sábios-Assembly of the Wise" os sábios debatem alguns desses assuntos, embora vários outros tópicos também sejam debatidos. Vou citar alguns desses paralelos que aparecem no meu livro, aos interessados o link para o clubedeautores.com está á direita do blog para quem visualiza pelo pc, capa dele:



A ÁGUA COMO ELEMENTO PRIMORDIAL

   No livro os sábios mencionam que no princípio o trono de Deus pairava sobre as águas, que Deus separou as águas da terra que formavam uma só massa (o caos primordial também citado em outras mitologias) e que foi da água que Deus criou todos os seres vivos inclusive o homem (alguns cientistas defendem a teoria de que toda vida evoluiu a partir dos oceanos, que a milhões ou bilhões de anos atrás reações químicas agiram nos oceanos resultando na formação de aminoácidos complexos que então teriam se transformado em organismos unicelulares, multicelulares, e continuaram evoluindo passando por peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos. A Torá e o Alcorão parecem insinuar algo parecido):

"Yair se sentou e disse:

-(Gênesis cap. I versículo 1 a 2): "No princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas." Daí deduzimos que dessa massa, ou caos primordial, a água se destacava. A água é portanto um dos mais importantes elementos de onde vieram todas as coisas. Também está escrito: (Sêfer Yetsirá cap. II parte 6): "Ele formou a substância a partir do caos e fez a não existência vir á existência." (...) E também: (Sêfer Yetsirá cap. III parte 4): "As três mães Alef, Mem, Shim no universo são ar, água e fogo. O céu foi criado do fogo, a terra foi criada da água e o ar de fôlego decide entre eles."

 Hamad se sentou e disse:

-Está escrito: (Alcorão cap. XI versículo 7): "Foi Ele (Deus) quem criou os céus e a terra em seis dias, -antes seu trono repousava sobre a água- a fim de submeter-vos á prova e saber quem de vós tem melhor conduta." E também: (Alcorão cap. XXI versículo 30): "Os descrentes não repararam que os céus e a terra formavam uma só massa? Então a separamos e tiramos todos os seres vivos da água." E também (Alcorão cap. XXV versículo 54): "E foi ele quem criou o homem da água e determinou que tivesse parentes pelo sangue e parentes pelo casamento. Teu Senhor é poderoso." Portanto, antes havia o caos primordial, depois o Altíssimo -Exaltado seja!-separou a água dessa massa e a partir da água criou todos os seres vivos inclusive o homem."


MENÇÃO AOS ANJOS GABRIEL E MIGUEL

   O judaísmo possui um sistema de angelologia amplo no qual se separa os anjos em fixos e temporários e nos próprios nomes deles estão codificados as suas funções. Mas, Miguel e Gabriel tem um destaque especial. Miguel e Gabriel também são os únicos anjos mencionados pelos nomes próprios no Alcorão.

"Yair se sentou e disse:

(...)A tradição que recebemos coloca dois anjos em posição especial: (Bahir, versículo 11) "Ensina que Miguel, o príncipe da direita de Deus, é água e granizo, enquanto Gabriel, o príncipe á esquerda de Deus, é fogo. Os dois são harmonizados pelo Príncipe da Paz. Esse é o significa do versículo {Jó cap. XXV versículo 2}: 'Ele faz paz nas Suas alturas.'" Isso significa que Miguel é colocado á direita por estar relacionado ao pilar da misericórdia e Gabriel á esquerda por estar relacionado ao pilar da severidade (gibor). Além disso, sabemos que cada nação tem seu anjo protetor, e, quando um anjo faz a revelação a Daniel, ele diz que Miguel é um dos principais chefes: (Daniel cap. X versículo 13): "O chefe do reino persa resistiu-me durante vinte e um dias; porém, Miguel, um dos principais chefes, veio em meu socorro.(...) A Gabriel é incumbido a tarefa de transmitir mensagens importantes: (Daniel cap. IX versículo 21): "não havia terminado essa prece, quando se aproximou de mim, em um relance era hora da oblação da noite, Gabriel, o ser que eu havia visto antes em visão."

 Hamad se sentou e disse:

-Gabriel e Miguel são anjos eminentes pois são mencionados pelos nomes, como está escrito: (Alcorão cap. II versículos 97 a 98): "Dize, quem for inimigo de Gabriel -foi ele quem revelou a teu coração, com a permissão de Deus, o Livro que corrobora as escrituras anteriores: um guia e boas-novas para os crentes,

Quem for inimigo de Deus e de Seus anjos e de Seus Mensageiros e de Gabriel e de Miguel, terá Deus por inimigo: Deus é o inimigo dos descrentes."


ABRAÃO JOGADO NA FORNALHA

   A tradição judaica diz que quando Abraão era jovem os habitantes de Hur na Caudéia quiseram jogar ele em um forno de cal por ele ter quebrado as estátuas de seus ídolos e se recusado a adorá-los, mas Deus fez com que o fogo não o queimasse. O Alcorão também cita esse episódio.

"(...) Nós aprendemos que foi sob o reinado de Ninrod que os habitantes de Ur na Caudéia quiseram jogar Abraão no forno de cal por ele ter quebrado as estátuas de seus ídolos. E por isso Ninrod foi chamado de Amrafel que significa 'dentro da fornalha'.

 Hamad disse:

-Isso o Alcorão relata, conforme (Alcorão cap. XXI versículo 51 a 71): (...)

'Depois, entraram em confusão: 'Tu bem sabes que esses não falam.'

Replicou: 'E vós adorais, em vez de Deus, quem não vos pode nem beneficiar nem prejudicar?

Fora convosco e com os que adorais em lugar de Deus! Não compreendeis?'

Disseram: 'Queimai-o! E socorrei vossos deuses.'

E nós dissemos: 'Ó fogo, sê sobre Abraão frescor e proteção.'

Quiseram perdê-lo com um ardil, e fizemos deles os maiores perdedores.

E salvamo-lo, assim como Lot, conduzindo-o para a terra que abençoamos entre todas as terras.'"


A ALMA EM UM NÍVEL ELEVADO E COM SABEDORIA SE REFLETE EM UM CORPO BELO

   Alguns indivíduos cuja alma está em um nível de desenvolvimento superior e repleto de sabedoria tem suas virtudes refletidas em uma bela aparência física. Isso foi verificado em Saul que foi escolhido como o primeiro rei de Israel, ele foi escolhido porque já possuía os atributos de sabedoria e entendimento necessários para ser rei e isso se refletia na sua aparência: ele era mais belo, forte e alto do que os de sua época. Também se diz o mesmo sobre José filho de Jacó, sua excepcional beleza era reflexo de seu grande entendimento e desenvolvimento espiritual. Também Moisés foi considerado um homem de bela aparência em sua época pois sua alma estava em um nível muito elevado. Tanto a Torá quanto o Alcorão fazem alusão a isso.

"(...)Saul já tinha uma alma desenvolvida e sabedoria por isso era mais alto e belo do que os de sua época e mais apto a ser escolhido como rei de Israel conforme (I Samuel cap. IX versículos 1 a 2): "Havia um homem da tribo de Benjamim, chamado Cis, filho de Abiel, filho de Seror, filho de Becorat, filho de Afia, de família benjamita, que era um homem valente. Tinha um filho chamado Saul, que era jovem e belo. Não havia em Israel outro mais belo do que ele; dos ombros pra cima sobressaía a todo o povo." (...) E também (I Samuel cap. X versículo 24): "Samuel disse ao povo: 'Vedes aquele que o Senhor escolheu? Não há em todo o povo quem lhe seja semelhante'. E todos o aclamaram, dizendo: 'Viva o Rei!'

 Hamad disse: 

-É certo que além de beleza, Saul também era dotado de saber e força física como consta em: (Alcorão cap. II versículo 247): "E disse-lhes o seu profeta: 'Eis que Deus enviou-vos Saul por rei.' Disseram: 'Porque reinaria ele sobre nós? Temos mais títulos ao trono. E ele não é homem de posses.' Respondeu: 'Deus o escolheu e cumulou-o com saber e força física. Deus entrega o reino a quem lhe apraz. Ele é imenso e sabedor'" O mesmo aconteceu com José, que além da beleza recebeu notáveis atributos intelectuais como está escrito: (Alcorão cap. XII versículo 22): "Quando atingiu a plenitude de seu crescimento, outorgamos-lhes julgamento e sabedoria. Assim recompensamos os benfeitores." "Julgamento" pode estar se referindo a "severidade" relacionado a séfira de Gevurá ou "entendimento" se referindo a séfira de Biná. "Sabedoria" claramente se refere a séfira de Chocmá. Portanto, a beleza física de José era reflexo de sua grande sabedoria e conhecimentos ocultos que ele dominava."


A REVOLTA DE CORÉ

   Esse episódio narrado na Torá fala sobre Coré (chamado no Alcorão de "Karun") que era muito rico e de família levita e que por isso quis colocar a autoridade de Moisés em xeque afirmando que ele tinha mais direitos á esse posto. Ele e seus apoiadores foram tragados vivos pela terra que se fendeu.

"(...) A autoridade de Moisés foi questionada por Coré que era de família levita e muito rico, como consta em: (Números cap. XVI versículos 1 a 3): "Coré, filho de Isaar, filho de Caat, filho de Levi, Datã e Abiram, filhos de Rúben, levantaram-se contra Moisés, juntamente com outros duzentos e cinquenta israelitas, príncipes da assembléia, membros do conselho e homens notáveis. Dirigiram-se, pois, em grupo a Moisés e Arão, dizendo-lhes: 'Basta! Toda assembleia é santa, todos o são, e o Senhor está no meio deles. Porque vos colocais acima da assembleia do Senhor?'" Coré e todos que o apoiavam foram castigados sendo devorados pela terra, como está escrito: (Números cap. XVI versículos 27 a 33): "Afastando-se o povo de junto das tendas de Coré, Datã e Abiram, saíram esses últimos com suas mulheres, seus filhos e seus filhinhos e pararam á entrada de suas tendas. Moisés disse então: 'Nisto conhecereis que o Senhor me enviou a fazer todas estas obras e que nada faço por mim mesmo. Se estes morrerem com a morte ordinária dos homens e se a sua sorte for como a de todos, o Senhor não me enviou; mas se o Senhor fizer um novo prodígio e o solo abrindo sua boca, os engolir com tudo o que lhes pertence, de sorte que desçam vivos á habitação dos mortos, então sabereis que estes homens desprezam o Senhor.' Apenas acabou ele de falar, fendeu-se a terra debaixo de seus pés e, abrindo sua boca, os devorou com toda a sua família, todos os seus bens e todos os homens de Coré. Desceram vivos á morada dos mortos, eles e tudo que possuíam; cobriu-os a terra, e desapareceram da assembleia."

 Hamad disse:

-Como já dissemos, a fortuna de Coré (chamado de "carun" ou "Korah" no Alcorão) se devia a ele ter encontrado um dos armazéns onde José guardou o pagamento pelas provisões vendidas no tempo da seca no Egito. A história de Coré também está registrada em: (Alcorão cap. XXVIII versículos 76 a 81): 

"Korah pertencia ao povo de Moisés, mas agiu insolentemente contra ele. Havíamos-lhe concedido tantos tesouros que as suas chaves constituíam um fardo pesado mesmo para um bando de homens fortes. (...)

E fizemos a terra engoli-lo, juntamente com sua casa. E não havia ninguém para socorrê-lo contra Deus. E foi um dos derrotados."


   Esses são alguns assuntos que são encontrados na Torá e que o Alcorão também menciona, existem muitos mais, mas, citei apenas esses para demonstrar que o Alcorão confirma todas as verdades mencionadas na Torá e em algumas narrativas mostra até mais detalhes.





 

     


 




sexta-feira, 3 de julho de 2020

OS  CRIADORES  DE  GOLEMS

   Olá pessoal! Nesse post vou falar sobre histórias de alguns indivíduos que teriam realmente criado um golem, ou tentado alguma variação.
   Eu já havia feito um post aqui nesse mesmo blog de título "O GOLEM NO MISTICISMO JUDAICO" no qual eu falei de modo geral sobre o golem incluindo sua presença na ficção e cultura pop, mas, aqui nesse post vou falar especificamente sobre relatos que envolvem a criação de golems.
   Naquele post eu havia indicado um bom texto de referência sobre o assunto "Golem: Jewish Magical and Mystical Traditions on the Artificial Anthtropoid" de Moshe Idel. Fiquei feliz de encontrar um vídeo relativamente recente de 2019 de uma palestra de Moshe Idel, é satisfatório ver um erudito como ele que mesmo com a idade atual está bastante lúcido e ativo. Sobre o golem, resumidamente trata-se de uma criatura feita de barro com aparência humana e que ganha vida através das artes do Sefer Yetsirah, clássica obra cabalística. Entretanto, o Sefer Ystsirah não é uma "receita de golem", a criação do golem é um subproduto do Sefer Yetsirah, realmente é um livro pequeno, mas, abrangente, certas técnicas presentes nele podem ser usadas e aplicadas de muitas formas diferentes, a criação do golem é apenas uma delas. Como se trata de uma técnica de altíssimo nível, poucos estão aptos a realizá-la com sucesso, e, incautos podem ser seriamente prejudicados por um mínimo erro. Vou tentar seguir uma ordem cronológica nos relatos a partir daquele considerado o primeiro criador de golem.

ABRAÃO

   O patriarca do judaísmo é considerado como o primeiro homem a explorar os mistérios do Sefer Yetsirah. A interpretação rabínica diz que Abraão "criou almas em Harã". Interpretações dão conta que Harã era um local de idolatria, ou seja: adoração a estátuas. Por isso se interpreta que Abraão "criou almas" ao converter as pessoas para a adoração ao Deus único, "criar almas" seria o equivalente a convertê-las. Outro ponto em que se cita Abraão como apto a "criar" é na parte em que se diz que foi acrescentado a letra "he" a seu nome. Essa letra pode ser considerada um nome de Deus resumido, dessa forma Abraão tornou-se um criador em potencial também. Pouco conhecidas são as obras de caridade de Abraão, segundo a tradição ele criou uma hospedaria onde recebia viajantes lhes dando cama e comida sem cobrar nada por isso. Depois que os viajantes se alimentavam Abraão pedia a eles para proferirem uma benção em agradecimento. Os viajantes perguntavam em nome de quem deviam agradecer, ele respondia ao Deus do universo. Deus recompensou Abraão dizendo: "Meu nome não é conhecido entre minhas criaturas, e você tem feito ele ser conhecido entre eles. Eu vou recompensar você fazendo você ser associado a Mim, criador do mundo." Por isso está escrito: "E ele abençoou ele e disse: Bendito seja Abraão por Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra!" Uma interpretação diz que Abraão se sentou sozinho e meditou no Sefer Yetsirah, mas não conseguiu entender nada. Então uma voz celestial lhe disse: "Você está tentando se igualar a Mim? Eu sou aquele que criou o Sefer Yetsirah e dominou-o, mas, você por si mesmo não pode entendê-lo. Tome um companheiro e medite nele junto, assim você vai compreendê-lo." Então Abraão foi até seu professor, Sem, filho de Noé, e ficou com ele por três anos. E meditaram nele por três anos, após os quais eles puderam criar tudo que desejassem. Desde então ninguém pode dominar o Sefer Yetsirah sozinho, é necessário estudá-lo com outro, e apenas após três anos os estudantes se tornam aptos a criar algo. Outra interpretação dos rabinos que corrobora é sobre a fórmula "behibar'am" (como ele criou) que transpondo a ordem das letras gera "be-Avrham" (por Abraão). Abraão transmitiu o segredo do Sefer Yetsirah para seu filho Isaac, e esse por sua vez a Jacó e assim por diante. 

OS FILHOS DE JACÓ

   Uma interpretação rabínica diz que os filhos de Jacó, pelas artes do Sefer Yetsirah puderam criar novilhos que abateram para comer e moças (golens femininos) com os quais se uniram sexualmente. José, então adolescente e ingênuo, viu aqueles atos e pensou que eles estavam cometendo graves pecados ao comer o novilho sem fazer o abate de acordo com a tradição, ao se unirem sexualmente a mulheres desconhecidas e também a tratar mal os filhos das concubinas de Jacó Bilá e Zilpá. Essas seriam as "más notícias" que José levou a seu pai sobre o comportamento dos outros irmãos, conforme alude Gênesis cap. 37 versículo 2:

   "Eis a história da descendência de Jacó: José, ainda jovem, com a idade de dezessete anos, apascentava o rebanho com seus irmãos, os filhos de Bilá e os filhos de Zilpá, mulheres de seu pai, e ele contou a seu pai más notícias sobre seus irmãos."

   José ainda não havia recebido esses conhecimentos relativos ao Sefer Yetsirah por isso não sabia que não havia transgressão nos atos de seus irmãos. O novilho de três anos que era criado por essas artes não requeria um abate cerimonial, é possível criar não apenas um golem na forma de homem mas também na forma de mulher depende da combinação de letras usada em momento específico, e esse "golem feminino" não é considerado como uma mulher real portanto não se considera errado manter relações. E a hostilidade dos irmãos de José com os filhos das concubinas de Jacó se devia a restrição de que esses conhecimentos não devem ser ensinados aos filhos dos servos mas apenas aos mais nobres dos filhos legítimos. Posteriormente supõe-se que José tenha recebido tais conhecimentos também.

BETSALEL

   Esse é um caso em que técnicas do Sefer Yetsirah aparentemente não foram usadas para se criar golens ou animais. No meu outro blog "ricardodias7.blogspot.com" no post de título "A CIÊNCIA DA FORMA, DA MATÉRIA E A GEOMETRIA SAGRADA" eu mencionei Betsalel filho de Huri da tribo de Judá, hábil artesão que foi escolhido por Deus para ser o principal responsável pela criação do tabernáculo, os objetos do altar e cerimônias e o mais importante: a arca da aliança que ele fez sozinho. Betsalel conhecia técnicas do Sefer Yetsirah, mas, não usou para criar golens e sim para criar esses artefatos especiais, conforme Arieh Kaplan diz em sua versão comentada do Sefer Yetsirah:

   "Os mistérios do Sefer Yetsirah foram usados novamente após o Êxodo quando os israelitas estavam construindo o Tabernáculo no deserto. O Talmud diz que Betzalel foi escolhido para construir este Tabernáculo porque ele 'sabia como permutar as letras com as quais o céu e a terra foram criados'. Tal conhecimento esotérico era necessário, visto que se pretendia que o Tabernáculo fosse um microcosmo, traçando um paralelo simultâneo com o Universo, o domínio espiritual e o corpo humano. Não era suficiente a mera construção de um edifício físico. Na construção o arquiteto tinha de meditar no significado de cada parte e imbuí-las com as propriedades espirituais necessárias."

   Betsalel fez uso de técnicas específicas do Sefer Yetsirah para conferir propriedades singulares aos artefatos e não para criar golems, pois repito: o Sefer Yetsirah não é uma "receita de golem".

JOSUÉ

   Esse é mais um caso em que, segundo interpretações de rabinos, técnicas do Sefer Yetsirah foram usadas, mas não para se criar golems. Essa citação diz respeito ao episódio da destruição das muralhas de Jericó por Josué o homem que recebeu diretamente de Moisés autoridade para liderar os israelitas na árdua tarefa de estabelecê-los na terra prometida. Jericó era uma cidade fortificada e o exército dos israelitas não puderam penetrar nela. As muralhas somente vieram abaixo devido a orientação de Deus a Josué para que junto ao exército dessem voltas nas muralhas por sete dias com a arca sendo levada na frente por sete sacerdotes e no sétimo dia dessem sete voltas quando finalmente pudessem clamar alto, assim elas cairiam conforme o cap. 6 de Josué:

   "Jericó, cidade murada, tinha se fechado diante dos israelitas, e ninguém saía dela nem podia entrar. O Senhor disse a Josué: 'Vê, entreguei-te Jericó, seu rei e seus valentes guerreiros. Dai volta á cidade, vós todos, homens de guerra; contornai toda a cidade uma vez. Assim farás durante seis dias. Sete sacerdotes, tocando sete trombetas, irão adiante da arca. No sétimo dia, dareis sete vezes volta á cidade, tocando os sacerdotes a trombeta. Quando o som da trombeta for mais forte e ouvirdes sua voz, todo o povo soltará um clamor e a muralha da cidade desabará. Então, o povo tomará de assalto a cidade, cada um no lugar que lhe ficar defronte. (...)
   O povo clamou e os sacerdotes tocaram as trombetas. E logo que o povo ouviu o som das trombetas, levantou um grande clamor. A muralha desabou. A multidão subiu á cidade, sem nada diante de si."


   Podemos interpretar esse feito de diversas formas, como por exemplo entendendo que Josué não recebeu orientação direta de Deus como uma voz lhe dizendo para fazer isso, mas, que ele pode ter tido uma inspiração que lhe deu a ideia de aplicar um "exercício" do Sefer Yetsirah para colocar as muralhas de Jericó abaixo. No capítulo 2 parte 4 do Sefer Yetsirah consta:

   "Vinte e duas letras Fundação:
   Ele as colocou em um círculo como um muro com 231 portões.
   O círculo oscila para frente e para trás.(...)"

   Atente que essa é uma sugestão e não uma opinião definitiva, mesmo porque esse exercício em particular é usado para outra coisa seguindo uma prática "tradicional" do Sefer Yetsirah. Mas, assim como um martelo pode ser usado para construir algo ele também pode ser usado para destruir. Mais um caso em que técnicas do Sefer Yetsirah não foram usadas para criar golems.

O PROFETA JEREMIAS E BEN SIRÁ

   O profeta Jeremias teria vivido em meados de 600 a.C. ele soube que Jerusalém cairia nas mãos de Nabucodonosor II que destruiria o templo. Segundo a tradição, Jeremias teria criado um golem mas não sozinho e sim com a ajuda de seu filho Ben Sirá. A história do nascimento de Ben Sirá é bastante curiosa, não se deu em circunstancias normais, nem ele era uma criança normal. Isso é o que Arieh Kaplan diz:

   "É possível que tenha havido mais de uma pessoa com o nome Ben Sirá, mas o desta tradição era claramente o filho de Jeremias. Há uma tradição curiosa a respeito de seu nascimento. Jeremias havia sido abordado por homosexuais na casa de banhos e, como consequência, havia experimentado uma ejaculação na banheira. Seu sêmen permaneceu viável e, quando sua filha usou depois a mesma banheira, foi fecundada por ele, dando á luz a Ben Sirá. Ben Sirá era, portanto, o filho de Jeremias."

   O nome "Ben Sirá" significa "filho da semente" muito apropriado. A filha de Jeremias se envergonhou por estar grávida sem ter tido relações. Quando a criança nasceu já falava de modo eloquente desde cedo (assim como Jesus). E foi a própria criança que explicou que Jeremias era seu pai. Ben Sirá era um prodígio e se aplicou nos estudos da Torá com afinco até dominar os segredos em tempo record! Essa criança foi levada á corte de Nabucodonosor onde deu valiosos conselhos ao rei sobre vários assuntos, histórias de Ben Sirá tem caráter anedótico no folclore judaico. Moshe Idel na já citada obra faz uma citação sobre Ben Sirá e seu pai Jeremias se engajando na criação de um golem, e eles obtiveram sucesso. A criatura era perfeita ao ponto de falar e raciocinar, tanto que ela mesma se deu conta de que caso esse feito de sua criação se tornasse público as pessoas da época pensariam que criar o homem não foi um ato tão extraordinário de Deus pois outros homens conseguiram criar o mesmo, assim elas menosprezariam a autoridade divina. Por isso a criatura tomou a iniciativa de apagar a palavra em sua testa que a mantinha viva, aquele jogo de palavras "emet" (verdade) se apaga a primeira letra aleph fica "met" (morto) veja:

   "Uma versão sobre a criação do golem é encontrada no livro 'Sefer há-Gematri'ot' uma coletânea de tradições reunidas dos discípulos do rabi Yehuda he-Hassid, ela diz:

   Ben Sirá quis estudar o Sefer Yetsirah. Então uma voz celestial lhe disse; 'Você não pode fazer isso sozinho'. Então ele foi até Jeremias, seu pai. Junto a seu pai Jeremias, eles estudaram por três anos e finalmente criaram um homem e na sua testa foi escrito 'emet' (verdade) como na testa de Adão. E a criatura disse a eles: 'Se o Eterno, louvado seja! Criou Adão, quando ele quis matar Adão, ele apagou a letra de 'emet' e o que restou foi 'met' (morto), mais ainda eu gostaria de fazer isso e você não teria criado um homem, então as pessoas não teriam errado em relação a Ele, como aconteceu na geração de Enoch.' Por isso Jeremias disse: 'Maldito é o homem que descende de Adão!' A criatura disse a ele: 'Reverta a combinação de letras pra trás.' E eles apagaram a letra aleph da sua testa, e imediatamente ele voltou a ser pó."

RAVA E RAV ZEIRA

   Essa narrativa é relativamente bem conhecida dos estudantes. Rava e Rav Zeira pertenciam a terceira geração dos amoraítas, os sábios que editaram o Talmud, viveram em meados do ano 300 d. C. Ao Rava é atribuído o dito "Se os justos quisessem, poderiam criar um mundo". Quanto ao Rav Zeira, ele nasceu na Babilônia (atual região do Iraque), seu pai foi um coletor de impostos do império persa louvado como um dos poucos a exercer essa atividade de maneira honesta. Conta-se que Rav Zeira além de sábio tinha uma enorme capacidade de concentração e domínio do corpo, uma vez por mês ele testava suas habilidades andando descalço sobre brasas de carvão sem sofrer dano algum. Certa vez os outros sábios o distraíram quando ele fazia isso e por isso ele queimou os pés. Desde então passaram a apelidá-lo de "pequeno homem dos pés queimados"! Zeira ganhava a vida como mercador de linho e viajava frequentemente de Israel para a Babilônia. Segundo Moshe Idel:

   "Rava também quis entender o livro (Sefer Yetsirah) sozinho. Então o Rav Zeira disse a ele: 'Está escrito: Uma espada pende acima do solitário, e ela pode cair. O que equivale a dizer que uma espada está acima do estudante que estuda sozinho e se ocupa por si mesmo com os mistérios da Torah. Vamos nos unir e nos ocupar com o Sefer Yetsirah.' Então eles foram e meditaram nele por três anos e conseguiram entender ele. E quando eles conseguiram, criaram um bezerro e o mataram para celebrar a conclusão dos estudos."

   De acordo com a história, depois que mataram e comeram o bezerro para comemorar em uma festa, eles perderam seus poderes. Isso porque estavam sendo fanfarrões e se vangloriando. Por isso tiveram que trabalhar duro por mais três anos para recuperarem esse domínio. O versículo 196 do Bahir oferece comentários sobre o assunto, veja:

   "Disse o Rava: Se os justos quisessem, podiam criar um mundo. O que impede? Vossos pecados, conforme está escrito (Isaías 59:2) 'Apenas os vossos pecados vos separam de vosso Deus'. Por isso, não fora pelos vossos pecados, não haveria diferenciação alguma entre vós e Ele.
   Observamos, portanto, que Rava criou um homem (golem) e o enviou ao Rav Zeira. Dirigiu-lhe a palavra, mas não obteve resposta (o golem era mudo e Rav Zeira o fez retornar ao pó). Não fora pelos nossos pecados, seria capaz de responder.
   E de onde responderia? Da sua alma.
   O homem tem uma alma para colocar nisso?
   Sim, conforme está escrito (Gênesis 2:7): 'E Ele soprou em suas narinas uma alma de vida'. Se não fosse pelos vossos pecados, o homem, portanto, teria uma 'alma de vida'. Por causa de vossos pecados, todavia, a alma não é pura.
   Essa é a diferença entre vós e Ele. Está, portanto, escrito (Salmos 8:6): 'E Tu o fizestes um pouco menos que Deus'. 
   Qual é o significado de 'um pouco'? É porque o homem peca, e o Santo Abençoado não. Abençoado seja Ele e abençoado seja Seu nome para todo o sempre, Ele não tem pecados."

   Portanto, enquanto o golem criado por Jeremias e seu filho era perfeito até demais a ponto de antever a perversidade dos homens e desejar ser destruído, o golem criado por Rava era imperfeito e não tinha capacidade de falar.

RABI  ISAAC  BEN  ASHER

   Esse é um caso em que estudantes quiseram usar o Sefer Yetsirah para criar algo, mas cometeram um erro crucial no processo e quase morreram. Isso é o que conta Moshe Idel:

   "Uma vez os discípulos do rabi Y. Ben A. estudaram o Sefer Yetsirah, mas eles erraram na direção e afundaram na terra até o umbigo pelo poder das letras. Eles não conseguiram sair e gritaram por ajuda. O rabi Y. disse para eles recitarem as letra na direção correta. Assim eles conseguiram sair."

   Arieh Kaplan no trecho do Sefer Yetsirah onde aparecem os 231 portões faz comentário semelhante, veja:

   "(...)Procedendo em círculo, ele canta as combinações de letras, primeiro aleph com todas as demais letras, depois beit, até que se percorra todo alfabeto. Se alguém deseja destruir a criação, procede em direção oposta.
   Conta-se também que os discípulos de Riva tentaram usar o Sefer Yetsirah para fazer uma criatura. Mas foram na direção equivocada e se inundaram em terra até a cintura através do poder das letras. Apanhados, gritaram pedindo auxílio. O Riva foi finalmente contactado e fez seus outros discípulos recitarem os alfabetos procedendo na direção oposta, até que os incautos fossem libertados."

   Na nota bibliográfica, Kaplan explica que Riva é a forma acróstica de rabi Ysaac Ben Asher, veja:

   "(Riva) Acrônimo do R. Yits'chac ben Asher, morto em 1132. Scholem, em seu Kabbalah and its Symbolism p. 186, afirma que este acróstico se refere a R. Yismael ben Elisha. No Museu Britânico, MS.754, a abreviatura é R. Ts, que Scholem supõe que pode referir-se a um certo R. Tsadoc." 

   O que exatamente aconteceu com os discípulos de Riva? Como dissemos, há muitas variações de aplicações de técnicas do Sefer Yetsirah, nesse caso aconteceu na parte dos "231 portões". Os discípulos de Riva estavam "recitando" as combinações de letras (há modos de se realizar essa prática sem vocalizar as combinações de letras, apenas mentalmente e visualmente) mas assim o fizeram na direção errada. O estudante tem que estar atento ao fato de que a sequência correta de uso das letras hebraicas é da direita para a esquerda (assim como a escrita árabe), inverso da nossa escrita ocidental rotineira. Por isso, todo processo que envolve as letras hebraicas deve ser feito seguindo elas da direita para esquerda, os discípulos foram da esquerda para direita em círculo, sentido "horário" quando deveriam ter ido no sentido "anti-horário". O poder das letras "desmanchou" o chão sob eles como lama, e eles ficaram imersos até o umbigo. Alguém ouviu seus pedidos de ajuda e o Riva mandou eles recitarem a sequencia de letras na direção oposta a que estavam fazendo, assim puderam sair. As consequências poderiam ter sido fatais. 
   Das descrições escritas sobre métodos de criação de golem existe o encontrado em "Perush 'al Sefer Yetsirá" de Eleazar de Worms (1176-1238) esse foi citado por Moshe Idel. O mestre de Eleazar foi o rabi Yehuda he-Hasid e é dito que o pai de Yehuda, Shemuel he-Hassid criou um golem. Há também o "Emec HaMélech" feito pelo rabi Naftali Bacharach do séc. XVII, esse é um trecho dele em hebraico reproduzido no Sefer Yetsirah comentado de Arieh Kaplan:

   No Talmud, especificamente no "San'hedrin 65b" se diz que o rabi Chanina (também chamado de Hiyya) e rabi Hoshaiyah (também chamado Hoshia) se ocupavam de através do Sefer Yetsirah criar um bezerro de três anos toda sexta feira para abatê-lo e comê-lo no shabat. Arieh Kaplan comenta:

   "O Talmud diz que 'Rabi Chanina e Rabi Hoshia dedicavam-se ao Sêfer ietsirá toda sexta-feira, antes do Shabat, e criavam para si um novilho, e o comiam'.(...)
   Existem muitas interpretações sobre o que exatamente os dois sábios conseguiam criando tal novilho e por que o faziam. Alguns dizem que não criavam de fato um novilho físico, mas sim uma imagem meditativa com tal clareza que a satisfação espiritual era similar à da comida. Um cabalista do quilate de Abraham Abuláfia (1240-1296) sustenta inclusive que sua criação era mística, e não física. O Rashba (Rabino Shelomo ben Aderet, 1235-1310) viu um significado particular no fato de eles se ocuparem daquilo na sexta-feira, o dia da criação original dos mamíferos.(...)"

   Pode ser apenas uma criação meditativa do bezerro e não física, mas, há uma lógica por trás disso. A tradição judaica diz que todo judeu tem a obrigação de celebrar o shabat como um dia especial, e ambos rabi Chanina e rabi Hoshia eram pessoas humildes, eles trabalhavam como sapateiros por isso não deviam ter condições de adquirir tanta carne para a celebração do shabat e recorriam a métodos do Sefer Yetsirah para cumprirem sua obrigação. Seria um caso em que a falta de dinheiro era compensada pelo alto grau espiritual que permitia aos sábios realizar essa proeza.  

BAAL SHEM TOV

   Já falei aqui nesse blog sobre a vida desse importante cabalista que criou o movimento chassidista no post de título "BAAL  SHEM TOV E O MOVIMENTO CHASSIDISTA". Muitas histórias místicas são atribuídas a Baal Shem Tov (1698-1760) cujo nome verdadeiro era Israel Ben Eliezer, mas, sobre a criação de um golem é menos conhecida. É significativo que em certo ponto da  vida de Baal Shem Tov sua renda vinha principalmente da escavação e venda de argila (a matéria da qual é feita o golem). Veja o que Moshe Idel diz a respeito em sua obra:

   "O rabi R. Zevi Askenazi conhecido como he-Hakhan Zevi descendente do Baal Shem Tov disse a seu filho rabi Jacob Emden que o Baal Shem criou um golem. Jacob Emden diz em sua autobiografia que seu pai lhe contou:
   'O golem não falava e era servo do Baal Shem. E quando o rabi viu que as mãos da criatura ficaram maiores e mais fortes devido ao nome divino escrito em um papel e colocado na testa da criatura, o rabi temeu que a criatura ficasse perigosa e destrutiva. Ele rapidamente arrancou o papel com o nome divino da testa da criatura e essa voltou a ser pó. Mas ela feriu seu mestre quando ele estava tirando o papel.'"  

   São conhecidas as histórias de que Baal Shem expulsou demônios, realizou curas milagrosas e ascendeu aos planos superiores atingindo o estado de "devekut" (união com o divino). Mas sobre ele ter criado um golem é pouco divulgado. Alguém com o nível espiritual dele certamente teria condições de fazê-lo. Sobre as mãos da criatura que teriam crescido e ficado mais fortes, isso se baseia no conceito de que o universo, a criação de Deus continua a crescer e a se expandir, portanto, toda obra que se assemelha a obra divina também tem potencial de crescer. Alguns físicos teóricos realmente acreditam que o universo está em contínua expansão.

GAON  DE  VILNA

   O Gaon de Vilna (Elijah ben Solomon Salman) 1720-1797 de Vilna na Lituânia é mais conhecido como um perito em legislação judaica (halachá), Talmud da Babilônia e de Jerusalém, interpretações da Torah, gramática hebraica e a maioria dos textos importantes do judaísmo do que como estando envolvido em misticismo. Ele ganhou a alcunha de "Gaon" (significa "gênio") pois dominou conhecimentos avançados muito cedo. Aos sete anos começou seus estudos de Talmud com um especialista, a partir dos dez anos continuou estudando sem professores. Mais tarde viajou por várias partes da Polônia e Alemanha. Antes dos vinte já era procurado por outros rabinos para dar conselhos a respeito de halachá. Sua modéstia era tamanha que se recusou a receber o título de rabino embora tivesse evidentemente preparo para tal. Se opôs ao movimento chassidista como herético. Dava palestras apenas para discípulos selecionados. Na obra de Moshe Idel ele menciona que o Gaon quis se envolver na criação de um golem quando era muito jovem, mas que desistiu, veja o trecho:

   "Há uma discussão entre o rabi Hayyim de Volohzim e seu mestre rabi Elyahu, o Gaon de Vilna. Hayyim menciona sobre o Sefer Yetsirah e seu mestre:

   Com relação ao Sefer Yetsirah sua versão estava sempre correta. Eu propus a ele dez diferentes versões do Sefer Yetsirah e ele me mostrou a versão correta a do Ari com apenas um erro de impressão. Quando eu disse que então seria fácil criar um golem, ele respondeu: 'Uma vez eu comecei a criar um golem, mas enquanto eu estava engajado em fazer isso eu vi uma aparição sobre minha cabeça e desisti de continuar dizendo comigo mesmo que os céus queriam me prevenir contra os erros de minha juventude.' Quando eu perguntei a ele quantos anos ele tinha quando fez isso ele respondeu que mal tinha acabado de completar treze anos."

   Realmente, o Gaon foi um gênio se estava em condições de entender algo sobre o processo da criação de um golem com tão pouca idade. Mas ele teve a prudência suficiente para perceber que não deveria continuar, que ainda não estava preparado o suficiente para isso, evitando assim uma tragédia. Sobre sua avaliação das diferentes versões do Sefer Yetsirah que lhe foram apresentadas por seu discípulo, isso acontece porque com relação a textos de conteúdo avançado é costume os rabinos mesmos distribuírem versões espúrias deturpadas intencionalmente para evitar o entendimento desses conhecimentos, apenas os que tem devido preparo sabem distinguir qual seria a versão correta. O Gaon também foi um dos responsáveis pela redação de uma das versões do Sefer Yetsirah realmente respeitada pelos especialistas, a versão chamada "versão Gra" essa versão recebeu esse nome porque passou pela edição de Moisés Cordovero, o RAMAC 1522-1570, depois foi revista por Issac Luria o ARI 1534-1572 e finalmente revisada pelo Gaon de Vilna chamado de GRA, assim essa versão ás vezes é chamada de "versão Gra-Ari".

O MAHARAL

   Chegando finalmente na citação sobre o mais famoso criador de golem o Maharal (rabi Judá Loew ben Betsalel) de Praga Rep. Tcheca 1525-1609. Ele foi extremamente respeitado em sua época e não aceitou o pagamento pela ocupação de rabino pois já tinha meios de se manter graças a negócios bem sucedidos de seu pai. Mesmo se aposentando da ocupação de rabino ele ainda era considerado o líder da comunidade de Praga. Se encontrou em particular com o Imperador Rodolfo II. O Maharal em sua vida foi conhecido como perito em halachá e realmente escreveu livros sobre vários assuntos, mas, sobre ele ter criado um golem para proteger os judeus do gueto de Praga dos abusos isso só veio á publico séculos após sua morte. Segundo Moshe Idel:

   "Em 1909 rabi Judel Rosenberg publicou um livro chamado 'Nifla'ot Maharal' onde descreve o Maharal criando um golem com a ajuda de seu genro rabi Isaac ben Shimshon Katz e seu discípulo rabi Abraham Hayim, e o golem é chamado de Yosl. Essa é a mais famosa história a respeito do golem, mas, não possui comprovação."

   O Maharal escreveu vários livros versando sobre a Torah embora alguns livros e manuscritos tenham se queimado no incêndio de 1689. Ele não era totalmente alheio ao misticismo, na biografia dele feita por Yaacov Dovid Shulman consta:

   "O Maharal ensinou que feitiçaria, que é proibida pela Torá, consiste em 'envolver-se em ritos sobrenaturais que fazem coisas aparecerem e desaparecerem' (Beer Hagolá), ou que permitem que alguém obtenha riqueza ou poder. Também, a pessoa está proíbida de fazer uso de uma criatura de forma não desejada pelos Céus. Assim é proibido consultar um Ov ou Yidoni, pois isso envolve consultar um morto, e o morto deve ficar no outro mundo, não nesse.
   Por outro lado, há coisas que a pessoa tem permissão de fazer. Por exemplo, o Maharal ensinou que 'é de grande sabedoria ensinar uma pessoa como se proteger de forças [espirituais] destrutivas.' Estas técnicas devem ser usadas somente para propósito de 'autoproteção e salvação dos outros'. A pessoa também pode induzir um ser não físico a 'falar ou mostrar alguma coisa. Como isto não envolve nenhum ato fora do comum, não é considerado feitiçaria. A pessoa se conecta a um ser não físico de uma maneira que não causa dano algum.' 'Isto', explicou o Maharal, 'costuma ser acompanhado do ato de unir uma entidade não física por meio de um juramento em Nome de D'eus, tal como alguém que faz uma testemunha jurar em Nome de D'eus ao lhe contar algo.' 'A pessoa tem permissão de amarrar um anjo por meio de um juramento, pois, ás vezes, este é um dos propósitos pelo qual o anjo foi enviado a este mundo.'"

   É possível que essas histórias do Maharal criando um golem tenham sido publicadas anos após sua morte apenas para ganhar publicidade em cima de uma figura muito conceituada em sua época. Mas também é possível que ele realmente tenha feito isso. Não há consenso.
   Por fim, aqui estão algumas histórias de indivíduos que criaram golems, ou se envolveram em variações de técnicas do Sefer Yetsirah. Demanda ser feito um trabalho mais apurado e minucioso a respeito desse grande livro. Um dos grandes fascínios da minha vida é o Sefer Yetsirah. Todo esse lastro de histórias é interessante, mas, é necessário fazer um trabalho destinado a estudantes mais avançados e não apenas oferecer uma visão geral sobre ele. Um estudo sobre as origens do Sefer Yetsirah é um caso á parte, sobre sua estrutura e estilo literário é outro. Trata-se de um texto teórico, filosófico e também prático, mas a parte prática do Sefer Yetsirah costuma ser desconhecida da maioria. Digo por mim mesmo e falando apenas de experiências pelas quais eu passei sem levar em conta qualquer relato de outros, que nele se encontra uma ciência muito avançada, ciência que lhe dá com vibrações, disciplina mental e manipulação de matéria, a estrutura básica do universo. Conheço a maioria dos grimórios consagrados pela tradição e sinceramente não me impressiono com eles. Eles contém "sistemas" que são do gosto e do estilo da época e local dos seus compiladores, e eu não gosto de usar sistemas dos outros emprestado. Pego dos grimórios os elementos básicos de oculto que possuem paralelos em vários outros meios pois são universais, comuns ao oculto em geral. Durante um certo tempo fiz exercícios muito simples do Sefer Yetsirah quase todo sábado. Depois, parti para exercícios mais elaborados e complexos. Mas, parei antes de dar um passo adiante na parte mais avançada, não levei essa prática para o nível seguinte. O ambiente na minha casa é péssimo para exercícios que demandam quietude e concentração, já é muito dar conta de elaborar trabalhos em cima de temas que não devem ser tratados de maneira leviana e ainda por cima publicá-los, disponibilizá-los para o público, isso está além das minhas possibilidades mas eu tento. Os problemas pessoais cotidianos, preocupações e trabalhos por fora matam qualquer chance de estar em um estado mental minimamente apropriado. Mas, quando puder pretendo levar a prática adiante e quando tiver alcançado o resultado que almejo vou sim elaborar um estudo o mais abrangente possível sobre o Sefer Yetsirah destinado a estudantes seriamente comprometidos.  


  


terça-feira, 23 de junho de 2020

A ORIGEM DAS NAÇÕES ANTIGAS E DAS DOZE TRIBOS DE ISRAEL

   Olá a todos! Nesse post vou apresentar uma visão geral sobre como a tradição judaica interpreta a origem dos principais povos da antiguidade (que viriam a formar os reinos e etnias então conhecidos da atualidade) e sobre as 12 tribos de Israel.
   Os judeus por serem um povo muito antigo e também por terem recebido conhecimento a respeito sabiam quais eram os ancestrais que viriam a gerar os diversos povos. O historiador judeu da antiguidade Flávio Josefo (38 d.C-100 d.C) já menciona sobre as origens das nações no seu livro "Antiguidades dos Judeus". De acordo com a Bíblia, os diversos povos que vieram a se espalhar sobre a terra surgiram de Noé e seus três filhos Sem ,Can e Jafet (considerando que teoricamente o dilúvio "eliminou" todos os outros humanos, embora hajam controvérsias e até quem argumente que alguns escolhidos se salvaram dessa catástrofe em refúgios subterrâneos por exemplo) o dilúvio reiniciou as gerações humanas. Através da lista genealógica apresentada em Gênesis se conhece os ancestrais de algumas nações como em Gênesis cap. 10 versículos 2 a 5:

   "Os filhos de Jafet foram Gomer, Magog, Madai, Javan, Tubal, Meshech e Tirás. Os filhos de Gomer foram Ashkenaz, Rifai e Togarmá. Os filhos de Javan foram Elishá, Tarshish, os Quititas e os Dodanitas. Deses, as nações ilhas, seus clãs e suas nações ramificaram-se, cada um com sua língua, em suas terras."

   De modo geral, considera-se que Jafet foi o ancestral dos povos "caucasianos" de pele clara e olhos claros, celtas e escandinavos por exemplo. "Magog" um de seus descendentes pode ser uma referência ao mítico povo de Gog e Magog, ou, como muitos interpretam ao povo russo. Javan é o ancestral dos gregos. E Ashkenaz parece remeter ás populações judaicas do norte e oriente da Europa chamados askenazi, por extensão aos povos eslavos. Meshech e Tirás são considerados os ancestrais do povo persa. Continuando em Gênesis cap. 10 versículos 6 a 7:

   "Os filhos de Ham foram Cush, Egito, Put e Canaã. Os filhos de Cush foram Sebá, Chavilá, Sabtá, Raamá e Sabtechá. Os filhos de Raamá foram Shebá e Dedan."

   Ham (também pronunciado como "Cam") é considerado o ancestral dos povos africanos. Cush foi outrora o nome de um reino africano ao sul do Egito. O próprio Egito é considerado um reino criado por um descendente de Ham. Sebá remete claramente ao reino de Sabá de onde veio a rainha que viria a se relacionar com Salomão. No "Kebra Nagast" livro sagrado da Etiópia há um trecho em que a princesa do Egito, a primeira a induzir Salomão a idolatria, repreende Salomão por ter gerado um filho com a rainha de Sabá que era estrangeira e negra, mas, Salomão argumenta que tanto ela quanto a rainha de Sabá pertenciam a mesma linhagem de Ham pois ele ainda sabia esse conhecimento sobre a origem dos povos, veja o trecho:

   "E ela respondeu: -Teu filho levou Zion embora (a Arca da Aliança), teu filho a quem tu geraste, que surgiu de um povo alienígena (estrangeiro), ao qual não foi indicado para se casar, de uma mulher etíope, que não é da tua cor, nem de teu país, e que é mais do que tudo, negra.
   E Salomão respondeu: -Não és tu da raça da qual Deus nos impediu de tirar esposas? E tua raça é a raça dela, pois todos vocês são crianças de Ham. (...)"

   Portanto, embora, a princesa do Egito tivesse pele clara e a rainha de Sabá fosse negra, ambas pertenciam á mesma linhagem e geração de Ham. Sabe-se que o Egito antigo foi uma nação multirracial, houveram tanto faraós negros quanto de pele clara, análises de pesquisadores atuais confirmam. Continuando em Gênesis cap. 10 versículos 21 a 22: 

   "Filhos nasceram também a Sem. Ele foi o ancestral de todos os que viviam do outro lado (o lado oriental do Eufrates) e irmão de Jafet o filho mais velho. Os filhos de Sem foram Elam, Assíria, Arpachshad, Lud e Aram."

   Sem é considerado o ancestral dos povos semitas, mencionou-se ali Assíria um povo beligerante do crescente fértil. 
   Os judeus consideram o hebraico a "língua mãe" de todas as outras a língua original da humanidade (há debate entre filólogos e outros especialistas o que não é a nossa área). O ponto de dispersão e surgimento das outras línguas foi o episódio da torre de Babel em Gênesis cap. 11 versículos 5 a 9: 

   "Deus desceu para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens haviam construído.  Deus disse: 'Eles são um único povo, todos tendo uma língua e é isto que começam a fazer? Então não deveriam agora ser impedidos de fazer tudo que planejaram? Vinde, desçamos e confundamos ali sua fala, para que um não entenda a fala do outro. Deus espalhou-os daquele lugar por toda a face da terra, e eles pararam de erigir a cidade. Por isso, ela foi denominada Babel, pois foi esse lugar em que Deus confundiu a língua do mundo inteiro. Dali Deus dispersou-os por toda a face da terra."

   A tradição judaica considera que as nações raiz dos povos antigos foram 70 e também 70 eram as línguas raiz dos povos antigos. Agora vamos avançar até o surgimento das 12 tribos de Israel.
   Que o povo de Israel era separado, subdividido em 12 tribos, ou clãs se preferirem, isso o Alcorão confirma conforme o cap. 2 versículo 60:

   "E quando Moisés pediu água para seu povo, dissemos-lhe: 'Bate na rocha com teu cajado,' E da rocha brotaram 12 nascentes. E cada tribo soube que nascente lhe pertencia. E foi-lhe dito: 'Comei e bebei do que Deus criou, mas não corrompais a terra.'"

   A raiz dessas 12 tribos e os nomes delas vieram dos 12 filhos de Jacó. José era o segundo filho mais novo, eu já li grande variedade de versões de fora da Bíblia sobre as dificuldades que ele passou antes de se tornar vice rei do Egito e narrativas mostrando outras facetas de sua personalidade também são muito ricas, mas, o que se mantém em todas narrativas é sobre sua beleza e inteligência. Além do idioma egípcio que ele aprendeu, José conhecia todas as línguas dos outros povos estrangeiros que frequentavam o Egito e isso parecia ser um pré requisito para fazer parte da realeza no Egito conforme o comentário de Rashi ao Gênesis cap. 38 versículo 44:

   "O faraó então disse a José (na presença da multidão): 'Eu sou o faraó, sem tua permissão, nenhum homem levantará sua mão ou seu pé em toda terra do Egito.' (comentário de Rashi): Quando escutaram que também estariam subordinados a José, os conselheiros do faraó exclamaram: 'Como podes conceder a um escravo autoridade sobre nós?!' O faraó respondeu-lhes: 'Identifico nele características régias.' Disseram-lhe: 'Se estiveres certo, ele deve saber todas as setenta línguas, como se espera da realeza.' Porém, antes que pudessem testar José, veio o anjo Gabriel e ensinou-lhe todos os idiomas que ele ainda não conhecesse. Depois disso, qualquer que fosse a língua em que o faraó lhe falasse, José respondia na mesma língua. Contudo, quando José tentou conversar com ele em hebraico, o faraó não o compreendeu, pois a língua hebraica havia sido preservada apenas pela linhagem de Sem. Vendo que José conhecia esse idioma, e portanto que era mais apto que ele para governar o Egito, o faraó lhe disse: 'Jura que não divulgarás isto', e José jurou-lhe."

   A cada uma das 12 tribos é atribuído um símbolo, como um brasão heráldico. Esse símbolo é baseado nos atributos próprios daquela tribo. Devido a sua visão profética, quando deu sua última benção a seus filhos Jacó pode conhecer quais seriam os atributos de cada tribo. Graças a isso ele também pode perceber que Efraim o filho mais novo de José merecia a benção principal embora o primogênito fosse Menache (ou Manasés se preferirem) ele soube que a tribo de Efraim seria maior, de mais destaque, conforme Gênesis cap. 48 versículos 12 a 15:

   "José então os tirou de entre os joelhos de seu pai e curvou-se em direção a ele, ao chão. José tomou a ambos a Efraim com sua mão direita á esquerda de Israel, e Menashe com sua mão esquerda á direita de Israel e aproximou-os dele. Israel estendeu sua mão direita e a pôs sobre a cabeça de Efraim, embora ele fosse o filho mais novo, e pôs sua mão esquerda sobre a cabeça de Menashe. Ele cruzou suas mãos deliberadamente, apesar de saber que Menashe era o primogênito. Ele abençoou José e disse: 'Que Deus, diante de quem andaram meus pais, Abraão e Isaac, o Deus que foi meu pastor desde meus primeiros dias até hoje, e sempre enviou o anjo que me livra de todo mal, abençoe os jovens. Que eles levem o meu nome, juntamente com o nome de meus pais Abraão e Isaac, e se propaguem como os peixes, mas na terra.'"

   Devido a essa parte, alguns atribuem o peixe como um símbolo da tribo de José embora seja pouco comum. A tribo de José é diferente das outras, pois, as tribos de Efraim e Manasés junto a de José são consideradas como sendo uma só tribo. A benção de Jacó a seus filhos da qual se baseou o símbolo e atributos de cada tribo está no cap. 49 de Gênesis:

   "Rubem, tu és meu primogênito, minha força, o primeiro do meu vigor. Notável em dignidade e notável em poder. Impetuoso como água corrente, mas não terás o primeiro lugar pois movestes o leito de teu pai de lugar e desse modo maculastes meu leito."

   Costuma-se atribuir a tribo de Rubem o símbolo da água corrente, sua pedra correspondente no peitoral do sacerdote é o rubi e a posição dessa tribo em torno do tabernáculo durante a viagem pelo deserto é o sul. Eu optei por desenhar eu mesmo o símbolo ao invés de usar uma imagem da internet que representa as 12 tribos pois elas estão muito estilizadas:

   "Simão e Levi foram parceiros no crime, suas espadas são instrumentos de violência. (...) Maldita cólera que os levou á violência, maldito furor que os induziu á crueldade!"

   Costuma-se atribuir a espada como símbolo da tribo de Simão, a pedra no peitoral é esmeralda e sua posição é sul:

   Embora Levi tenha sido mencionado por Jacó compartilhando com Simão a perícia na espada, essa tribo é mais lembrada por ser a casta sacerdotal que foi incumbida de transportar a arca e realizar trabalhos diretamente relacionados ao templo. ás vezes se usa a arca como símbolo dessa tribo, o tabernáculo e aqui optei por usar o peitoral do sacerdote. A pedra é o topázio e a posição é ao redor do tabernáculo mais próximo que as outras tribos, os filhos de Gérson á oeste, de Merari ao norte, de Aarão ao leste e de Coate ao Sul:

   "Judá, como um filhote de leão, voltas trazendo a caça, se agacha e se deita como um leão temível, quem ousará despertá-lo? Não se apartará de Judá o cetro, até que venha aquele a quem pertence por direito e em torno do qual as nações se reunirão."

   O símbolo do leão é atribuído a tribo de Judá e essa tribo exerceu a realeza em Israel. A pedra é o carbúnculo e a posição é leste:

   "Zabulon habitará a beira dos mares, no litoral onde aportam os navios, sua fronteira se estenderá até Sidon."

   O símbolo atribuído a tribo de Zabulon é o navio, ou porto sendo seus atributos as viagens e comércio marítimos. A pedra é o diamante e a posição é o leste:

  "Issacar é como um jumento forte deitado entre as cidades. Vê que o descanso é bom e a terra aprazível. Curva os ombros sob a carga e cumpre seu trabalho."

   O símbolo da tribo de Isaacar é um jumento. A pedra é safira e a posição é leste:

   "Dã julgará seu povo, as tribos de Israel. Dã será como uma serpente no caminho, mordendo a pata do cavalo e derrubando o cavaleiro."

   O símbolo da tribo de Dã é a serpente. A pedra é o jacinto e a posição é norte:
 
   "Gad será saqueado por quadrilhas de assaltantes, mas também os assaltará e perseguirá."

   O símbolo atribuído a tribo de Gad costuma ser as tendas de um acampamento militar. A pedra é ametista e a posição é norte :

   "De Asher provirão as iguarias mais deliciosas que abastecerão o rei."

   Embora a benção de Jacó não especifique que alimentos sejam esses, convenciona-se atribuir a tamareira com seus frutos á tribo de Asher, possivelmente pela tamara ser uma iguaria muito apreciada e típica do clima desértico dessa região. A pedra é o crisólito e a posição é norte:

   "Naftali é como um veado solto que trás boas palavras."

   O símbolo atribuído a Naftali é um veado (antílope, corsa). A pedra é ágata e a posição é norte:

   "José é um homem encantador como uma videira fértil junto á nascente e com os ramos crescendo acima de um muro."

   Há outras características atribuídas a tribo de José, mas, optaremos por usar uma videira para representá-la. A pedra é o ônix e a posição é oeste. Como já disse, essa tribo se difere das outras por ser reunida sob o nome de três patriarcas, além de José os nomes de seus filhos Efraim e Manasés:

   "Benjamim é como um lobo feroz que agarra a presa pela manhã. Á tarde reparte os espólios."

   O símbolo atribuído a Benjamim é o lobo, a pedra é jaspe e a posição é oeste:


   Como dito, cada tribo ocupava uma posição em torno do tabernáculo durante a travessia do povo pelo deserto:


   A descrição das pedras com os nomes das tribos de Israel no peitoral do sacerdote aparece em Êxodo cap. 28 versículos 15 a 21:

   "Farás um peitoral de julgamento artisticamente trabalhado, do mesmo tecido que o ephod: ouro, púrpura violeta e escarlate, carmesim e linho fino retorcido. Será quadrado, dobrado em dois, do comprimento de um palmo. Tu o guarnecerás com quatro fileiras de pedrarias. Primeira fileira: um sárdio, um topázio e uma esmeralda; segunda fileira: um rubi, uma safira, um diamante; terceira fileira: uma opala, uma ágata e uma ametista; quarta fileira: um crisólito, um ônix e um jaspe. Serão engastadas em uma filigrana de ouro. E, correspondendo aos nomes dos filhos de Israel, serão em número de doze, e em cada uma será gravado o nome de uma das doze tribos, á maneira de um sinete."

   Há uma variação nos nomes das pedras do peitoral, em uma versão do Êxodo com comentários de Rashi as pedras são chamadas: quartzo vermelho, esmeralda, quartzo amarelo, rubi, safira, berilo (gema azul-esverdeada), zircônia vermelha, quartzo rajado, ametista, crisólito amarelo-esverdeado, ônix e jaspe (quartzo esverdeado). Mas, é uma questão a ser levantada a razão de essas pedras terem sido escolhidas. Tudo, desde os números, arranjos, e os materiais usados na construção do tabernáculo, da arca e dos utensílios e vestes dos sacerdotes é bastante elaborado. Há uma razão para isso? E mais: essa combinação de pedras já foi submetida a algum tipo de teste por meios científicos para saber quais seriam as propriedades dos objetos construídos com esses arranjos? No mais, espero ter contribuído para o leitor ter uma visão geral sobre a concepção da origem das nações antigas e das doze tribos de Israel.  

terça-feira, 28 de abril de 2020

ORAÇÕES  E  LITURGIA  JUDAICAS

   Olá pessoal! Nesse post vou falar um pouco sobre como são as orações judaicas e como é determinado o texto da Torá a ser lido durante a celebração.
   Sobre as orações que fazem parte do "serviço" a obrigação que todo judeu ortodoxo deve fazer diariamente, a fórmula principal é conhecida como "amidáh" (que significa "estar de pé") pois ela deve ser recitada em pé e com os pés juntos que segundo o Talmud é a posição de oração dos anjos. A amidáh completa é composta de dezoito porções ou orações segmentadas, mas, a parte da abertura é a mais importante e geralmente se instrui o adepto a memorizá-la e em hebraico, transcrevo abaixo ela:

   "Bendito sejas Tu, ó Eterno,
   nosso Deus e Deus de nossos pais,
   Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó,
   Ó Grande, Poderoso e Temível Deus,
   Deus altíssimo que concede boas graças,
   que tudo possui e recorda a bondade dos patriarcas
   e envia um redentor aos filhos
   dos seus filhos, por amor do Seu Nome.
   Ó soberano, Auxiliador, Salvador e Escudo!
   Bendito sejas Tu, Eterno, Escudo de Abraão."

   Arieh Kaplan em seu livro "Meditação Judaica" fornece valiosas explicações sobre o significado esotérico de cada palavra, pois trata-se de uma oração que foi elaborada cuidadosamente por sábios do passado, e ainda fornece explicações para seu uso como um tipo de "mantra" uma base para meditação. Ele diz que essa oração foi estabelecida em meados de 500. a.C. pela grande assembléia (sinédrio) sob a orientação do escriba Esdras (Esdras foi bem mais do que apenas um escriba, ele estabeleceu várias normas ainda observadas pelos adeptos ortodoxos até hoje, o Alcorão em certo trecho critica os judeus por o colocarem em um patamar igual ao Messias). O "serviço" compreende a recitação da amidáh "shacharít" no período do nascer da aurora até por volta das dez da manhã no máximo, a "mincháh" de após o meio dia até antes de anoitecer, e a "arvít" da noite. Não é de se estranhar a semelhança com o sistema de orações muçulmano que se compõe de cinco (a quinta e última é a da madrugada, não obrigatória e flexibilizada em comum consenso). Todas as orações judaicas incluindo para outras cerimônias como funeral, circuncisão, oração do shabat, e festas podem ser encontradas no "Sidur" um livro de orações composto por Amram Gaon diretor da yeshivá (escola de estudos judaicos) na região onde hoje é o Iraque em meados do séc IX.
   Com relação a liturgia judaica, tradicionalmente é feita no shabat (embora várias sinagogas tenham celebrações diárias). Os sábios do sinédrio estabeleceram que a Torá deveria ser dividida em 54 porções para serem lidas uma em cada shabat e festas, assim a conclusão terminaria em um ano (levando-se em conta que o cálculo do ano judaico é lunar e portanto diferente do nosso solar usado na maioria dos países ocidentais). Cada uma dessas porções da torá é chamado de "parashá" e é dividida em sete "aliá" menores para serem lidas cada uma por uma pessoa diferente. Logo após ela lê-se uma porção do livro dos profetas que é chamada de "haftará" (conclusão). Originalmente lia-se em hebraico e em seguida alguém especialmente escolhido traduzia para o aramaico baseado na versão da Torá em aramaica escrita por Onkelos (personagem de origem obscura). Certos cantos são feitos em ídish (dialeto dos judeus da Europa Oriental) ou ladino (dialeto dos judeus da Península Ibérica) de acordo com a comunidade. 
   As versões impressas de cada um dos cinco livros do Pentateuco são chamadas de "chumash" que significa um "quinto". A maioria hoje em dia já é impressa com comentários do erudito Rashi (Sholomo Itszaki) tamanha a importância desses comentários para os eruditos judeus. Uma edição do Chushah:

   Porém, o livro da Torá usado na leitura da parashá na sinagoga não é esse de versões impressas, é o rolo escrito á mão que é chamado de Torá propriamente. Ele é feito seguindo-se padrões bastante rigorosos com relação ás letras, tamanho, formato e estruturação do texto e material. É tão cuidadoso que mesmo quando esse rolo já está muito gasto não se descarta no lixo de qualquer maneira, ele é depositado em uma caixa e enterrado com respeito. Um rolo da Torá:

   Os judeus consideram que existe a Torá escrita: essa que foi registrada pelo sinédrio possivelmente alguns séculos antes de Cristo, no período de Esdras teria sido finalizada, e que existe a "torá oral" um tipo de conhecimento relativo a torá que não foi escrito senão tardiamente e apenas parcialmente sendo mantido apenas oralmente. Os comentários de Rashi, o Zohar e a parte substancial que compõe a cabala são considerados "torá oral" conhecimentos antes apenas mantidos e transmitidos oralmente e que explicam conceitos da Torá que não estão especificados na Torá escrita. Portanto, a história da formação do judaísmo como ele é hoje passa por indivíduos que estabeleceram seus fundamentos tempos atrás e cuja vida muitas vezes é encoberta em névoas. Os ritos foram estabelecidos baseados em fundamentos numéricos e esotéricos conhecidos por esses indivíduos. Existe um espaço, uma lacuna, entre o conhecimento recebido por Moisés no Sinai, o que ele transmitiu aos hebreus e o que foi finalmente estabelecido muito tempo depois como o que seria o judaísmo ortodoxo praticado nos dias atuais.